O PODER JUDICIÁRIO E SUAS RELAÇÕES INTERNAS DE PROMOÇÃO DE IGUALDADE DE GÊNERO

O PODER JUDICIÁRIO E SUAS RELAÇÕES INTERNAS DE PROMOÇÃO DE IGUALDADE DE GÊNERO

Por Rodrigo Trindade

 

Há anos, o Poder Judiciário Brasileiro atua no resguardo da igualdade de gênero, condena posturas discriminatórias e reconhece legitimidade nas ações afirmativas. Mas o que se tem feito e o que deve ainda ser feito para que as relações internas mantenham a coerência de postura?

Peço licença para contar uma pequena estória. Estória e História, com “E” e “H” e espero que possa ilustrar a importância que as relações internas do Judiciário podem fazer a diferença no progresso da jurisprudência.

Hoje, nas primeiras décadas do séc. XXI é difícil de acreditar, mas no início dos anos 60, os EUA eram um dos países com as leis mais racistas do planeta. E, por consequência, avançavam atos de desobediência civil e começavam a tentar chegar na Suprema Corte os primeiros processos, em décadas, para reversão da situação. A Suprema Corte dos EUA já tinha jurisprudência consolidada que reconhecia constitucionalidade nas leis estaduais que estabeleciam diversas modalidades de segregações raciais: praias segregadas, bairros segregados, escolas segregadas, transporte público segregado. E a maior parte da Corte não via necessidade de retomar julgamento dessas questões, porque – afinal – a Constituição ainda era a mesma, desde 1787 e as leis estaduais já tinham sido reconhecidas, décadas antes, como constitucionais.

Mas isso mudou de forma relativamente repentina. Lá, os debates são secretos e ninguém sabe ao certo quem convenceu quem, quem persuadiu quem a mudar de ideia. Mas há uma estória que pode esclarecer um pouco a situação. Antes da Suprema Corte anunciar a primeira das decisões sobre a matéria, em 1959, o Chief Justice Warren (equivalente a presidente do STF, no Brasil) decidiu fazer uma pequena viagem de inspiração sobre a matéria percorrendo os principais pontos históricos da guerra civil americana. E foi conduzido por seu motorista, um homem negro. Warren era da California, um estado conhecido pela vanguarda e lá racismo nunca entrou no plano legal. No final do primeiro dia de viagem, na Virginia, ele se hospedou em um hotel e orientou seu motorista para que fizesse o mesmo. No dia seguinte, pela manhã, Warren encontrou o motorista dormindo dentro do carro. E descobriu que ele teve de ficar por ali, porque nenhum hotel da cidade permitia hospedagem para homens negros. Em suas memórias, Warren escreveu “eu me senti embaraçado, eu senti envergonhado”. A viagem foi abortada por naquele instante, Warren voltou imediatamente para Washington e reuniu a Corte.

O primeiro grande embate foi decidir pela necessidade de reconhecer que as ações judiciais já em curso e que combatiam as leis segregacionistas deviam ser reconhecidas como merecedoras de julgamento. Nos EUA a Suprema Corte escolhe o que quer julgar.

Depois disso, precisou convencer a maioria conservadora de seus colegas a rever o posicionamento. E, por incrível que pareça, o julgamento foi unânime, de procedência dessas ações, com declaração de inconstitucionalidade das leis estaduais racistas. O fato hoje realmente parece quase banal, mas quase levou, verdadeiramente, à segunda guerra civil americana, inclusive com mobilização de tropas das forças armadas para fazer valer as decisões judiciais.

Após esse julgamento, outros vieram. Disseram que não bastava declarar inconstitucionalidades, mas eram necessárias ações positivas, como forma fazer valer o primado constitucional de igualdade de oportunidades para construção da felicidade individual – o grande valor da sociedade americana.

A partir desses julgamentos, aquela corte passou a ter um nome: entrou para a história como Corte Warren – a responsável pela mais importante e transcendente virada jurisprudencial. E que segue influenciando e estimulando a tomada de posição das Cortes Constitucionais do ocidente, permitindo as reinterpretações contemporâneas das constituições e validando as ações afirmativas de todo o planeta.

Mas mais que o resultado, o processo individual de convencimento do juiz Warren me desperta mais curiosidade e mais emoção. É muito significativo que a descoberta do mal, do injusto, da necessidade de conserto tenho ocorrido a partir da observância de dentro dos quadros do Poder Judiciário. Esse fato nos traz duas lições importantes.

Primeiro, a necessidade de identificação do entorno do julgador. É imprescindível que haja tempo, espaço e disposição para miradas interiores. Nem sempre a análise do exterior, dos livros, das decisões anteriores, do direito comparado é o melhor meio de identificar as demandas da comunidade a que serve o juiz. Olhar para dentro não é apenas escutar o próprio coração, mas ouvir os corações que batem mais próximos de nós.

A segunda lição é a de coerência. Os valores que devem ser concretizados nas decisões judiciais precisam guardar legitimidade na medida em que são aplicados em nossas relações internas. O juiz Warren considerou inadmissível que também participasse ele de um processo natural de discriminação aplicado para seu funcionário. E isso porque os valores aplicados no ato de julgar devem se refletir de forma exemplar no Poder Judiciário. Para nós justrabalhistas isso é essencial, porque em nenhum outro campo do Direito há luta mais intensa – e mais cotidiana – entre o poder de auto-organização, da administração e do capital com os direitos fundamentais de dignidade e igualdade.

O valor da igualdade material de oportunidades conforme a raça deve ser aplicado nos nossos julgamentos. Não como um valor teórico, metafísico, mas a partir da compreensão de que mesmo no âmbito interno de nossas relações internas ainda não alcançamos igualdade material de oportunidades entre pessoas de raças diferentes.

Nós aplicamos em nossas sentenças e acórdãos o valor crescente que veda a plena submissão do empregado ao empregador. E afirmamos e defendemos que as administrações empresariais devem se pautar pelo respeito mútuo, pela gestão compartilhada, pelo compartilhamento de responsabilidades. E, mais uma vez, não se trata de simples teoria, mas que ganha legitimidade na medida em que também avançamos na democratização de nossas relações internas. Lutamos que toda a magistratura participe do processo de escolha dos dirigentes dos tribunais.

De forma segura, nos esforçamos para desvendar e reprimir formas de discriminação de gênero e de violência contra a mulher nas relações de trabalho. E elas costumam ser bem disfarçadas, porque – afinal – a covardia tributária da discrição. E assim agimos, porque também atuamos na concretização em nosso plano interno de políticas habilitadas a saber onde ocorrem as discriminações e demais violências. E, principalmente, na firmeza com que as reprovamos, promovemos consertos e buscamos formas de evitar que se formem e perpetuem.

A ação iniciada com o Projeto Igualdade de Gênero, do TRT-4 é expressão da continuidade dessa bela trajetória de ações afirmativas. E não vamos permitir que ninguém diga que se trata de política sem validade prática, fora do tempo ou ultrapassada. O fato de termos acesso formal acentuado de mulheres no mercado de trabalho e no serviço público não afasta as estatísticas:

– Mulheres recebem salários, em média 17% menores que os homens.

– Um em cada 10 homens podem alcançar altos cargos. Para as mulheres, a proporção é de um para 40.

– As diferenças salariais ligadas

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