Ouroboros: a retroalimentação das reformas trabalhista e previdenciária

Mais que irmãs nascidas de uma mesma concepção econômica; as duas reformas, lançadas como salvadoras para a Nação, são percursos dependentes e que vivem da retroalimentação de suas justificativas.

Rodrigo Trindade

Todos reconhecem a imagem e poucos lembram o nome. Ouroboros é o símbolo da serpente que morde a própria cauda, e no mundo místico representa a imortalidade. Mas, popularmente, a cobra que engole sua extremidade significa o mal que se consome. Em boa linguagem popular, não é nada bom “morder o próprio rabo”.

Reforma Trabalhista e Reforma Previdenciária formam Ouroboros moderno. Apresentam-se na aparência da busca de continuidade e eternidade, mas acobertam um mal que se auto sustenta. Não são apenas irmãs nascidas de uma mesma concepção econômica; são percursos dependentes e que vivem da retroalimentação de suas justificativas.

Primeiro a trabalhista

Em grande parte resultado de numerosas convulsões sociais experimentadas desde meados de 2016, a reforma laboral implementada no ano seguinte surgiu com a promessa de modernizar as relações trabalhistas, reduzir desemprego e aumentar a renda.

Para ser claro e direito: passou longe do objetivo, muito longe.

No tempo de vigência, a Lei 13.467/2017 não apenas deixou de cumprir a jura de criação de novos postos, como manteve o desemprego excepcionalmente alto. O mais sério, no entanto, tem sido a ampliação da simples esperança de obtenção de trabalho. O número de desempregados está estabilizado em aproximadamente 12%, mas crescem as diversas categorias de subutilizados.

No mesmo período, os empregos informais (sem anotação na carteira de trabalho) seguem crescendo e não há qualquer sinal de arrefecimento. Em todas as atividades, o grupo de informais é o que está em expansão, fazendo com que não registrados, somados autônomos sem cadastro de pessoa jurídica, já somem mais de 40% dos ocupados no Brasil.

Nos meses da Reforma Trabalhista, também vimos a transformação de empregos formais. Passaram não apenas para o mercado negro, mas para os agora legalizados contratos de emprego precarizados (terceirizados, tempo parcial e intermitentes), além dos novos e mais empobrecidos autônomos. Atualmente, são os informais que baixam a taxa de desemprego, fazendo o índice passar de 13,1% no 1º trimestre de 2018 para 12,4% no segundo período.

Em paralelo, vai se moldando cenário de redução de rendas. O fim da ultratividade das normas coletivas têm barrado negociações entre empresas e sindicatos muito mais que estimulado, impedindo reajustes e aumentos reais.  No primeiro semestre de 2018, a quantidade de convenções coletivas fechadas recuou 45,2%, na comparação com o mesmo período do ano passado, segundo levantamento feito pela Fipe.

Por fim, de acordo com o IPEA, o mercado de trabalho brasileiro segue movendo-se para despedir principalmente trabalhadores com ganhos maiores. Apenas no 1º semestre de 2018, houve redução de 80 mil postos de gerência e, conforme o IBGE, teve soma de 5% de diretores atuando sem registro em carteira. O mesmo estudo mostra que, inversamente, as ocupações que mais ganharam postos são as que pagam menores salários.

Depois a previdenciária: agora vai!

Esquecendo justificativas e escondendo consequências, a Reforma Trabalhista sede protagonismo à irmã previdenciária. No lugar de rever as destrutivas regras laborais que vêm contribuindo para o empobrecimento, freando a economia e nutrindo o déficit do INSS, é a agora a Reforma da Previdência que se apresenta como salvadora da prolongada crise econômica.

O desaquecimento da economia enfraquece a arrecadação previdenciária, mingua a manutenção da máquina pública e amputa perspectivas de investimentos. Tudo isso alimenta o discurso de que sem a Reforma Previdenciária o país quebra, extingue-se a vida, implementa-se o apocalipse zumbi.

A maior parte da renda nacional vem do consumo gerado por salários e benefícios previdenciários, e não parece ser segredo que fortalecer ganhos de quem consome é o mais eficaz meio de reconstruir a economia. Mas a receita vem exatamente no contrário. Por diversos motivos, a iniciativa de alteração de regras da Seguridade Social tende a fazer avançar um dos mais trágicos efeitos da irmã laboral: a retração de relações de emprego formal e resultante perda de arrecadações previdenciárias.

O binômio destruição de empregos – queda de arrecadação parece mais que efeito indesejado de uma robusta interferência ideológica na legislação trabalhista. Com a extinção do Ministério do Trabalho no início de 2019 e consequente sucateamento da Superintendência Regional do Trabalho, a estrutura de fiscalização a fraudes em relações de emprego se não está encerrada, aproxima-se do abandono completo.

Efeitos previdenciários da Reforma Trabalhista

Viver a liberdade do mercado, libertar-se da CLT e atender o canto de acasalamento ao empreendedorismo. Longe das fantasias, o trespasse para o trabalho autônomo vem se demonstrando fenômeno majoritariamente decorrente da gestão forçada e nada glamourizada da própria sobrevivência. Essencialmente, produz serviços de baixa instrução, inseguros, exaustivos, mal remunerados e praticamente sem qualquer proteção social.

Segundo os dados do CAGED, o Brasil perdeu mais de 43 mil empregos com carteira de trabalho no mês de março. Com exceção do setor de serviços, que gerou meros 4,5 mil postos, os demais grandes setores perderam postos de trabalho com destaque negativo para o setor comércio, com – 28 mil empregos. Todas as regiões geográficas perderam vagas e apenas oito Estados tiveram geração positiva de empregos.

Entre 2016 e 2018, o mercado de trabalho brasileiro experimentou aumento de 23% do número de autônomos e essa passagem não significou melhora da renda. Ao contrário. Também em dados do IBGE, somente para os novos autônomos, a migração forçada resultou redução de 33% da renda.

O número de pessoas ocupadas na informalidade chegou a 35,42 milhões de pessoas, em média, em 2018 – um recorde da pesquisa Pnad Contínua, iniciada em 2012 pelo IBGE. A queda de diminuição de arrecadação previdenciária aprofundou-se nos meses da Reforma Trabalhista. Primeiro, em decorrência da queda de rendimentos decorrente da integração no novo mercado precarizado. Segundo, pela tendência de quase absoluta rejeição às obrigações sociais. Também conforme dados do IBGE, quase 80% dos trabalhadores por conta própria nem têm cadastro de CNPJ, nem contribuem para a Previdência Social. Não há como qualquer sistema de seguridade pública se sustentar dessa maneira.

Segundo levantamento da Folha de São Paulo, trabalhadores autônomos têm de ganhar o dobro de empregados para conseguir manter o mesmo padrão econômico. O problema é que autônomos costumam ter renda muito inferior a de empregados celetistas.

Com menos renda de emprego há naturalmente menos crédito e redução do consumo, alimentando a retração econômica e a cadeia que permite pagamento de contribuições previdenciárias.

Em estudo do Cesit/Unicamp, publicado em outubro de 2017, em cenário de pejotização tímida (5%) e formalização intensa (20%), a perda de arrecadações previdenciárias chegaria a R$ 4 bilhões/ano. Todavia, em cenário cada vez mais real de pejotização intensa (20%) e formalização tímida (5%) as arrecadações diminuiriam em R$ 30 bilhões/ano. Catastrófico.

O mais óbvio: PIS e condições de saúde dos trabalhadores

A questão trabalhista mais evidente embutida na proposta de Reforma Previdenciária diz respeito ao pagamento do abono salarial do PIS/Pasep. Mas a ampliação de tempo de trabalho tende a produzir efeitos de ampliação de acidentes e doenças laborais.

Abono do PIS/Pasep é benefício anual que deve ser pago àqueles que têm ganhos de até dois salários mínimos mensais. Com a Reforma, passaria a ser alcançado apenas a quem recebe até um salário mínimo por mês, o que corresponde a 91,5% do total de pessoas que podem receber. São cerca de 23 milhões de trabalhadores que perderiam aportes financeiros importantes, deixando de alimentar o mercado de consumo.

Um pouco menos explícito – mas muito mais grave – é o efeito de piora na saúde dos trabalhadores. Atualmente, a expectativa de vida no Brasil é de 75 anos, mas devido a diferenças regionais, alguns estados chegam a apenas 67 anos e certas cidades estão abaixo dos 65 anos.

A ampliação de período de trabalho para alcançar tempo de contribuição habilitado a aposentadoria afeta principalmente os mais pobres que são submetidos a serviços informais. São as mesmas pessoas que realizam serviços mais pesados, com mais riscos de morte e insalubridade não controlada. Para que os idosos em condições de miserabilidade possam receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a proposta enviada ao Congresso é que a idade mínima passe dos 65 para 70 anos. Para esses brasileiros, o prolongamento da permanência no trabalho é simplesmente o encurtamento do tempo de vida.

Engessamento do mercado de trabalho

Com a Proposta de Emenda à Constituição, pretende-se subir de 15 para 25 anos a contribuição mínima à Previdência como acesso à aposentadoria. Afeta, essencialmente, a força de trabalho mais pobre, que menos tempo consegue se segurar na economia formal. Como vimos, o recente estimulo à informalidade faz com que trabalhadores se mantenham mais tempo trabalhando sem registro em carteira e, com isso, menos contribuem para o INSS.

É bastante provável a dificuldade de comprovar 25 anos de contribuição aos 65 anos de idade, fazendo com que essas pessoas tenham de se manter mais tempo no mercado para se aposentar. Seguindo nos postos de trabalho e retardando a aposentadoria, reduz-se o ingresso de jovens que buscam colocação. Sem acesso, ficam desempregados ou aceitam serviços informais. Em ambos os casos, não há contribuição previdenciária e alimentam o ciclo de déficit.

Redefinição de idade mínima e tempo de contribuição são questões que precisam ser enfrentadas, mas não servirá para nada se for mantida a informalidade nas relações de trabalho. Sem uma política séria de fortalecimento da relação de emprego e do salário, não haverá ajustes previdenciários que sejam suficientes para vencer crises.

Capitalização opcional: dispensa, recontratação e rotatividade.

A substituição do sistema de solidariedade pelo de capitalização é o mais polêmico da Reforma Previdenciária. Em resumo, pretende-se que as contribuições sejam direcionadas a conta vinculada do trabalhador, mas sem “benefício definido” – sem garantia que a integralidade dos valores retornarão como aposentadoria. A gestão passaria a instituições públicas e privadas, que fariam o dinheiro dançar no sempre incerto baile da especulação financeira.

Pois bem. Pretende-se que o sistema da capitalização proposto seja formado por contribuições patronais iguais entre empregado e empregador. A parcela da empresa, que hoje é de 20%, passaria para 8,5%, mas apenas para os ingressantes no mercado de trabalho. Esses novos trabalhadores teriam a “opção” entre o antigo e o novo sistema. Ou seja, no momento da contratação, poderiam discutir com o patrão se este deverá recolher 20% ou 8,5% para a Previdência, e sem qualquer vantagem se ficar com o mais caro.

Em todo o mundo civilizado, direto do trabalho é incompatível com plena autonomia de fixar as condições contratuais. Até meados do século XX, chamava-se de “particularismo do direito do trabalho” e, hoje, trata-se de tendência universal e ampliativa. Em praticamente todos os ramos do direito obrigacional – notadamente no direito do consumidor –, relações contratuais com evidentes desníveis de potências entre as partes devem se submeter a modelos contratuais indeclináveis. 

A opção programática de criar “opção” por sistema previdenciário alimenta delírio de preferência livremente tomada na relação de emprego. A história recente nos ensina que empregado nada escolhe na hora da contratação.

Nos anos 60 do século passado, estabeleceu-se o regime do FGTS, pretensamente equivalente ao da estabilidade decenal (após 10 de serviço, empregados somente poderiam ser despedidos com motivo relevante, demonstrado pelo empregador). E também surgiu como sistema de eleição: na contratação, empregados podiam “escolher” entre os regimes de estabilidade ou Fundo de Garantia. Seguindo-se a indeclinável característica de ausência da liberdade de escolha sobre cláusulas essenciais em contratos desiguais, na prática, todos eram contratados no sistema do FGTS.

Aparentemente, a proposta ignora óbvia condição de fato, retorna ao modelo do século XIX e fantasia relação pretensamente igualitária entre empregado e empregador.

O único resultado possível é construir relação ainda mais desigual, empobrecedora, conflituosa e originada do processo despedida-recontratação. Unindo ausência de regras para vedação da dispensa com a oferta legal de economizar com arrecadações previdenciárias patronais, o resultado será obvio: contratação massiva no sistema de previdência precarizado e substituição dos “caros” do regime anterior pelos “baratos” do novo.

O futuro

Os efeitos nas alterações de regras trabalhistas vêm contribuindo, não apenas para prejudicar o mercado de trabalho, como para fazer desmoronar a previdência pública nacional. Resta descobrir se o mal seguirá se consumindo ou se os erros do passado serão compreendidos e superados.

Dificilmente existe instrumento simples para vencer a prolongada crise econômica nacional e encontrar um sistema previdenciário justo e sustentável. Alternativas são há anos apresentadas e envolvem acabar com desonerações e renúncias, rediscutir a dívida pública, cobrar devedores e acabar com a Desvinculação das Receitas da União. Os percursos dependentes e retroalimentados da Reforma Trabalhista somam a urgência de fortalecer a relação de emprego e encarar com seriedade o combate à informalidade.

Ou seguimos o Ouroboros reformista, com suas fantasias, promessas descumpridas e consumo do próprio corpo. Recentemente, foi lançada campanha orçada em R$ 37 milhões para convencer a população de que Reforma Previdenciária é boa. A Trabalhista também teve sua fortíssima campanha de mídia. Funcionou como estratégia de marketing e foi um fracasso na prática.

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