União Europeia decide que empresas podem proibir véu islâmico no trabalho
Rodrigo Trindade
Decisão de 15 de julho do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) reconheceu que companhias podem impedir empregadas de usarem véus para cobrir o rosto, dentro de certas condições, como na hipótese de prejudicar imagem de neutralidade aos clientes.
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem por missão velar para que o direito europeu seja interpretado da mesma forma em todos os países da União Europeia, bem como garantir que as instituição e os países do bloco respeitem o direito europeu. A corte tem sede em Luxemburgo e é constituída por um juiz de cada país integrante.
O caso
A decisão teve origem no Judiciário da Alemanha. O Tribunal do Trabalho de Hamburgo e o Bundesarbeitsgericht (Supremo Tribunal do Trabalho Federal, equivalente ao brasileiro Tribunal Superior do Trabalho) decidiram suspender as instâncias nacionais e submeter o caso ao TJUE para definições de questões prejudiciais e que implicavam interpretação de normativos da União Europeia.
Duas mulheres muçulmanas foram suspensas de seus trabalhos, em razão da disposição de seguirem usando véu islâmico, o hijab, nas dependências do empregador. No caso levado à corte, as duas empregadas – uma trabalhadora em clínica de cuidados para crianças com necessidades especiais; e outra, caixa de farmácia – não vestiam o véu quando foram contratadas. Apenas anos depois, passaram a fazer uso, atendendo a demandas familiares. Foram então orientadas a não mais utilizarem e, em razão da negativa, ficaram suspensas do trabalho, até atendimento da orientação do empregador.
O TJUE precisou avaliar se a proibição do uso do véu no trabalho representava uma violação da liberalidade religiosa ou se enquadraria como parte da liberdade de condução das atividades empresariais, com desejo da apresentação de neutralidade aos clientes.
A decisão
A resposta foi construída a partir da justificação de necessidades do empregador sobre a imagem do empreendimento, e que restaria afetada pelo uso do hijab. Afirmou a Corte que proibição de vestir qualquer forma de expressão política, filosófica ou crença religiosa dentro do ambiente de trabalho pode ser justificada ao empregador pela necessidade de apresentar imagem neutra para clientes ou para evitar disputas sociais. Reconheceu, então, haver genuína necessidade por parte do empregador de evitar que suas empregadas cobrissem o rosto com o véu religioso.
A Corte afirmou que a regra de proibição do véu se aplica como regra geral, também estabelecendo vedação de uso dos sinais religiosos cristãos, e que não há conduta discriminatória na orientação do empregador de não apresentação de símbolos religiosos por parte dos empregados. Há dois fundamentos manejados na decisão para reconhecer a inconveniência das manifestações religiosas no ambiente de trabalho: a) afetação da imagem de neutralidade da empresa; b) estímulo a conflitos.
O julgamento também ponderou que o uso de sinais externos robustos de filiação religiosa podem levar empregados a serem tratados de forma menos favorável que outros, o que conduziria situação discriminatória.
Embora os casos tenham origem no específico uso de véu islâmico por mulheres, em manifestação de credo religioso delimitado, a decisão da corte de Luxemburgo fixou regra mais ampla, reconhecendo como válida a proibição de uso em ambiente de trabalho de qualquer forma visível de expressão política, filosófica ou religiosa, desde que haja afetação na imagem de neutralidade junto aos clientes e como forma de evitar discussões sociais.
Todavia, o tribunal também reconheceu que a justificação deve corresponder a uma genuína necessidade do empregador, e como forma de reconciliar direitos e interesses em discussão. Desse modo, orientou que as cortes nacionais devem levar em consideração cada contexto específico dos Estados Membros e, em particular, disposições internas mais favoráveis à liberdade religiosa:
“(…) quanto à condição relativa à existência de um objetivo legítimo, a vontade de uma entidade patronal de anunciar, nas relações com os clientes quer públicos quer privados, uma política de neutralidade política, filosófica ou religiosa pode ser considerada legítima. Com efeito, a vontade de um empregador de dar uma imagem de neutralidade aos clientes diz respeito à liberdade de empresa, reconhecida no artigo 16.° da Carta, e reveste, em princípio, caráter legítimo, designadamente quando a entidade patronal envolve na prossecução desse objetivo apenas os trabalhadores que é suposto entrarem em contacto com os clientes da entidade patronal”
Para o TJUE, uma diferença de tratamento indiretamente baseada na religião ou nas convicções, decorrente da regra interna de uma empresa que proíbe os trabalhadores de usarem qualquer sinal visível de convicções políticas, filosóficas ou religiosas no local de trabalho, pode ser justificada pela vontade da entidade patronal de prosseguir em política de neutralidade política, filosófica e religiosa em relação aos clientes. Há, contudo, limites, estabelecendo-se certos requisitos: a) essa política deve responder a uma necessidade verdadeira da entidade patronal, efetivada em consideração às expectativas legítimas dos referidos clientes, bem como consequências desfavoráveis que sofreria na falta de tal política; b) observância da natureza das atividades empresariais ou o contexto no qual estas se inserem; c) a diferença de tratamento deve ser apta a garantir a boa aplicação da política de neutralidade, o que pressupõe que seja seguida de forma coerente e sistemática; d) a proibição deve ser limitada ao estritamente necessário, tendo em conta amplitude e gravidade reais das consequências desfavoráveis que a entidade patronal procura evitar através da proibição.
Ambos os processos agora devem retornar aos tribunais alemães, para decisão final, tendo por suposta a não identificação de discriminação pressuposta.
A França tem regras mais severas que a Alemanha
Nem todas as mulheres muçulmanas precisam cobrir o rosto. Há diferentes tipos de véus, e que atendem diferentes manifestações religiosas dentro do islamismo, mas o hijab é ainda o mais difundido. O tchador é comumente usado por mulheres iranianas, cobre os cabelos, mas deixa o rosto à mostra. A cobertura completa da face é feita pelo niqab¸ mantendo abertura apenas para os olhos. Já a burca, vem do Afeganistão e provoca os maiores debates pois cobre até mesmo os olhos.
Particularmente, o uso do véu islâmico traz ainda mais controvérsia que a simples manifestação de integração religiosa dentro de espaços públicos. O hijab e seus similiares guardam profunda associação com o papel tradicional que a religião islâmica estabelece para as mulheres, e que contrasta com a universal orientação europeia de igualdade de direitos entre gêneros.
Na Europa, a legislação referente ao véu muda conforme o país e a cultura, e a França é o país europeu com maiores restrições. Em 2011, entrou em vigor lei – a primeira do continente – para impedir a cobertura do rosto em lugares públicos. Com isso, o niqab e a burca tiveram uso proibido fora de espaços privados. A cúpula do judiciário francês, em 2014, reconheceu válida a dispensa de funcionária de creche, em razão do uso do véu islâmico. Para os magistrados, o trabalho em estabelecimento privado demandava estrita neutralidade por parte dos empregados. Também na França, desde 2004, o hijab passou a não mais ser permitido nas escolas públicas, da mesma forma que outros símbolos religiosos ostensivos.
Em 2017, regra aprovada pela União Europeia determinou que empresas podem impedir seu quadro de funcionários de usar amplas coberturas da cabeça ou outros visíveis sinais religiosos, dentro de certas condições. A decisão causou fortes reações de grupos religiosos.
Reação muçulmana
A decisão da mais alta Corte de Justiça da Europa foi recebida com inconformidade por parte de representantes de organizações muçulmanas. Além disso, em artigo do Humann Rights Watch, afirmou-se que mulheres muçulmanas não deviam ser chamadas “a escolher entre suas fés e seus trabalhos”. O escrito de opinião também pontua que o controle legal dos corpos femininos está crescendo em índices alarmantes, e de diversos modos, na Europa. Isso incluiria o banimento de véus islâmicos na França e a completa proibição do aborto na Polônia.
O ministro do exterior da Turquia lamentou o julgamento, afirmando que contribui com o racismo e a islamfobia na Europa.
Nossa Revisão
O papel das crenças individuais nas relações coletivas é terreno bastante inseguro, e por isso a decisão do TJUE causa repercussão. Coloca-se em sempre tenso terreno de sopesamento de profundos valores existenciais e de convivência. Entre o direito de liberdade religiosa, preservação da laicidade e liberdade de administração de interesses empresariais, optou-se por fórmula de incerto equilíbrio, que pretende assegurar interesses privados (“neutralidade” da empresa) e coletivos (evitar “conflitos sociais”). A liberdade de crença é garantida, mas somente a partir de sua dimensão estritamente privada.
A decisão jurisdicional parte da construção consolidada de laicidade do Estado, e projeta para as relações particulares. Segue, em princípio, o caminho de transporte de direitos fundamentais, originalmente direcionados ao Poder Público e que, em evolução, também passa a regrar condutas entre pessoas privadas. Embora tenha se originado de circunstâncias de publicidade da fé muçulmana, estabeleceu elementos muito amplos, aplicando-se a todos os tipos de filiação religiosa, bem como orientações filosóficas e políticas.
Mas ainda há muitas incertezas. Um dos principais fundamentos do julgamento admite a ideia de que a proibição de vestimentas religiosas pode ter guarda jurídica a partir do interesse da prevenção de disputas sociais. Trata-se de justificação que, por ser extremamente incerta, pode se tornar perigosa, pois leva a uma discricionária seleção de quais disputas sociais podem justificar afastamentos de manifestações individuais, e quais não.
E, por fim, dentro da especificidade dos julgamentos, a decisão não ingressou em um dos temas mais controvertidos: a utilização do véu islâmico como instrumento de redução estrutural da condição feminina, a partir da imposições culturais. Não é nada fácil unir a normalização da obrigatoriedade de cobertura corporal de um único gênero, com a já antiga proposta ocidental de universal igualdade entre sexos.
E para o Brasil? Por aqui, também podemos pensar em certos sinais individuais de integração religiosa que contrariem políticas empresariais de “neutralidade”? Importante lembrar: o julgamento do TJUE baseou-se no claro comprometimento de empresas e de seus clientes com valores que estariam subvertidos por sinais de religiosidade, filiação filosófica ou política.