Jovens precarizados e velhos desempregados. O que esperar da proposta trabalhista do governo federal


A proposta de governo ignora a realidade da vida, retorna a modelos ultrapassados há quase dois séculos e fantasia convívio em igualdade de poderes entre empregado e empregador. O único resultado possível é construir relação ainda mais desigual, empobrecedora e conflituosa.

por Rodrigo Trindade

Já é a notícia mais comentada dos últimos dois dias: governo federal estuda criar modelo em que jovens poderiam abrir mão de direitos trabalhistas legalizados e optar por um mundo de liberdade negociadora com futuros patrões. O projeto parece seguir o que foi apresentado na campanha presidencial como Carteira Verde e Amarela. Mas, surpreendentemente, piora o que foi lá proposto.

A ideia básica é de dar “opção” a quem entra no mercado de trabalho, podendo, lá na entrevista de emprego, definir tudo o que tem e não tem direito. O projeto de campanha ainda ressalvava direitos constitucionais, mas o ministro da economia explicou que deseja ampliar as lâminas da precarização, e a negociação poderá afastar até benefícios constitucionais básicos, como férias e 13º salário. A fundamentação de alteração tão radical no modelo de pactuação está na frase exaustivamente repetida “é melhor mais trabalho com menos direitos, que direitos sem trabalho”.

Como disse o sociólogo Ruy Braga, o código de trabalho é uma espécie de armistício, em que se definem os limites de consumo de uma mercadoria muito especial, o trabalho humano. Sem esses limites, temos situação socialmente explosiva.

O projeto é um equívoco, e por diversas razões.

Não há nada de revolucionário, mas como as mais resistentes neuroses, insiste em fórmulas que já foram tentadas e não deram certo. Alguns exemplos.

Nos anos 60 do século XX, substituiu-se regime de trabalho estável (que vedava despedida sem justa causa, após 10 anos) pelo do FGTS. Também não foi formalmente imposto, mas apareceu como “opção” nas novas contratações. É claro que não houve chance de escolha e, na prática, todo novo funcionário foi contratado no combo sem estabilidade + descarte rápido.

A fantasia se repetiu no início do século seguinte, quando se permitiu que empregadas domésticas pudessem “escolher” pelo FGTS. Mais uma vez, o desnível econômico entre quem contrata e quem está desempregada falou mais alto e praticamente não houve adesão ao sistema que beneficiava empregadas.

Finalmente, em 2017, a Reforma Trabalhista criou amplo cardápio de contratações precarizadas (terceirizados, temporários, intermitentes etc). E o mercado de trabalho nacional segue com desemprego alto, ampliação de informalidade e subida do trabalho autônomo mal pago.

A versão 2019 não é apenas fantasiosa na concepção da “livre negociação”, mas avança em outro fetiche – o de que fugindo da lei, se consegue aumentar a renda. As experiências nacionais e internacionais de escancarar o mercado de trabalho mostram que o resultado é sempre o de redução da riqueza individual, instabilidade social e empobrecimento das contas públicas. Espanha, Portugal, México e Grécia são países que abriram seu mercado de trabalho para delirantes fórmulas liberalizantes, experimentaram fortes prejuízos e voltaram atrás.

No Brasil e no mundo, os efeitos mais imediatos da redução de direitos trabalhistas também estão associados a baixo rendimento produtivo, insegurança social e redução do mercado de consumo.  Segundo levantamento da Folha de São Paulo, trabalhadores autônomos têm de ganhar o dobro que empregados para conseguir manter o mesmo padrão econômico. O problema é que autônomos e empregados informais costumam ter renda muito inferior a de empregados celetistas registrados e com plenos direitos.

A pretensão reformadora parece não observar uma restrição óbvia e conhecida por qualquer estudante de Direito. Quis o legislador constituinte que diversos aspectos de valorização do trabalho fossem elevados a direito fundamental, estabelecendo amplo rol no art. 7º da Carta. Como direitos fundamentais, elevam-se à condição de cláusula pétrea e não podem ser suprimidos para qualquer trabalhador, nem mesmo via Emenda Constitucional. Um projeto tão juridicamente inseguro fatalmente levaria a longas, cansativas e inconvenientes batalhas judiciais.

Por fim, há crueldades adicionais. O projeto pretende negar aos mais jovens direitos experimentados pela atual força de trabalho empregada, criando uma massa de empobrecidos, desiludidos e sem muito futuro. Mas há algo que pode ser ainda pior. Com a ampla liberdade de dispensa, passará a ser extremamente sedutor mandar embora os “antigos-caros”, para contratar os “novos-baratos”. Em comum, também esses seguirão facilmente descartáveis e substituíveis, em uma trajetória retroalimentada de precarização.

Aparentemente, a proposta de governo ignora a realidade da vida, retorna a modelos ultrapassados há quase dois séculos e fantasia convívio em igualdade de poderes entre seres intrinsecamente desiguais. O único resultado possível é construir relação ainda mais empobrecedora, conflituosa e com dois novos e instáveis estamentos: os jovens precarizados e os velhos desempregados. Escolha o seu.

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