Azul ou verde e amarela?

Azul ou verde e amarela?

Rodrigo Trindade

 

Entre as propostas de governo dos candidatos à presidência da república que disputam o 2º turno, no campo do direito do trabalho, a mais abrangente – e conhecida – é a “carteira de trabalho verde e amarela”.

Enquanto a carteira tradicional azul serviria para contratações com aplicação da lei trabalhista, a bicolor teria prevalência do negociado individualmente sobre a CLT. O trecho do programa de governo refere que, a partir da nova carteira, “todo jovem que ingresse no mercado de trabalho poderá escolher entre um vínculo empregatício baseado na carteira de trabalho tradicional (azul) – mantendo o ordenamento jurídico atual –, ou uma carteira de trabalho verde e amarela (onde o contrato individual prevalece sobre a CLT, mantendo todos os direitos constitucionais)”. Ou seja, as pactuações sob a carteira verde e amarela permitiriam a plena negociação das condições de trabalho, podendo afastar as disposições legais, em nome da autonomia contratual.

Em todo o mundo civilizado, direto do trabalho é incompatível com plena autonomia de fixar as condições contratuais. Até meados do século XX, chamava-se de “particularismo do direito do trabalho” e, hoje, trata-se de tendência universal e ampliativa. Em praticamente todos os ramos do direito obrigacional – notadamente no direito do consumidor –, relações contratuais com evidentes desníveis de potências entre as partes devem se submeter a modelos contratuais indeclináveis. Em poucas palavras, o Direito busca compensar o desnível econômico, realocando a relação em patamar um pouco menos desequilibrado, um pouco mais civilizado.

A opção programática de criar “opção” por carteira de trabalho constrói aparência de preferência livremente tomada. Mas não precisamos ficar só na teoria, a história recente nos ensina que não é bem assim. Dois exemplos.

Nos anos 60 do século passado, estabeleceu-se o regime do FGTS, pretensamente equivalente ao da estabilidade decenal (após 10 de serviço, empregados somente poderiam ser despedidos com motivo relevante, demonstrado pelo empregador). E também surgiu como sistema de eleição: na contratação, empregados podiam “escolher” entre os regimes de estabilidade ou FGTS. Seguindo-se a indeclinável característica de ausência da liberdade de escolha sobre cláusulas essenciais em contratos desiguais, na prática, todos eram contratados no sistema do FGTS.

Já no século XXI, a fantasia foi repetida e permitiu-se que empregadas domésticas pudessem “escolher” pelo regime de FGTS. Mais uma vez mostrou-se a realeza da ficção e a eficácia optativa foi próxima a zero.

Em ambos, nunca houve efetiva opção de contratação por um ou outro sistema. A injunção do poder econômico do empregador fez com que o sistema de menos direitos sempre fosse o imposto.

É bem verdade que se poderia pensar em novo regime como alternativa para obter maiores rendas. O problema é que a “fuga da lei” leva exatamente ao resultado contrário. Todos os levantamentos estatísticos, nacionais e internacionais, demonstram que a exclusão do regime de emprego tradicional provoca redução geral da renda, afastamento de recolhimentos previdenciários e prejuízos ao mercado consumidor. Segundo levantamento recente da Folha de São Paulo, trabalhadores autônomos têm de ganhar o dobro de empregados para conseguir manter o mesmo padrão econômico. O problema é que autônomos costumam ter renda muito inferior a de empregados celetistas.

Aparentemente, a proposta de governo ignora óbvia condição de fato, retorna ao modelo do século XIX e fantasia relação pretensamente igualitária entre empregado e empregador. O único resultado possível é construir relação ainda mais desigual, empobrecedora e conflituosa. E será bem rápida: o turn over médio no Brasil é de 5,8 anos; em cinco anos, 90% dos empregados terão a verde e amarela; em 10, praticamente não teremos empregados, tais como os conhecemos hoje, e a CLT poderá ser aposentada pelo desuso.

Aqui, não há dúvidas: o monocromático azul segue na moda.

2 thoughts on “Azul ou verde e amarela?

  • outubro 17, 2018 em 3:15 am
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    O triste é que – parece – os trabalhadores estão votando contra si próprios. As últimas pesquisas trazem resultados desanimadores. Cid Gomes – creio que com seu irmão Ciro – faz público “mea culpa” do Partido dos Trabalhadores, quiçá já de olho em 2022. E, se assim for, quanto pior for o próximo quadriênio melhor será a pauta eleitoral dos seus opositores, mesmo às custas da mutilação e da morte dos direitos dos trabalhadores e da radical miséria destes e de suas pobres famílias. “Pereat mundus!” Mas que eu me eleja em 22! Dane-se o Brasil! Mas que eu me eleja em 22! Que o ingênuo e hipossuficiente trabalhador adote a carteira verde/amarela! Que o Partido dos Trabalhadores feneça! Mas que eu me eleja em 22!

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  • fevereiro 7, 2019 em 8:37 pm
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    Maria, acredito que existam políticos bem intencionados e muito preparados para exercer uma boa administração do país e se hoje não são eles que estão no poder, foi por escolha nossa. Estamos vendo as propostas de mudanças estruturais e existem muitas entidades da sociedade civil envolvidas e organizadas na luta para que muitos projetos não prosperem ou que sejam alterados para que não acarretem graves prejuízos aos direitos sociais, direitos humanos, dentre outros. São pessoas que apesar dos seus compromissos profissionais e familiares dedicam tempo e experiência nesta luta, para que não sejam solapados direitos tão importantes e tão arduamente conquistados, para que seja garantida a assistência, a segurança, educação, dentre outras obrigações do Estado. Porém, acho que temos que fazer a necessária autocrítica, chegamos a este ponto em razão das nossas escolhas e das nossas atitudes e percebo que a sociedade está aos poucos acordando, tirando a cabeça do próprio umbigo para se politizar, se informar, mas ainda é muito tímido e desencontrada essa mudança. Tenho certeza que a maioria ainda troca informações rasas nas redes sociais ao invés de se aprofundar e conhecer os textos legais dos projetos de lei realmente participar como cidadãos diretamente interessados, é o nosso país, a nossa vida, temos que lutar da manteria correta e não lutar uns contra os outros ou através de brigas e inimizades geradas nas redes sociais e nas rodadas de happy hour ou achando culpados, temos que nos informar e participar mais da vida política, deixar de exercer nossa cidadania apenas na urna, mas trabalhar muito na vigilância permanente para garantir nossos direitos e exigir que o Estado, na pessoa dos gestores públicos, cumpra seus deveres.

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