Advogados hifenizados: a precarização chegou no Congresso Nacional

Advogados hifenizados: a precarização chegou ao Congresso Nacional[1]

Rodrigo Trindade

 

Na Roma Antiga, advogados e outros profissionais liberais operavam seus ofícios unicamente em nome da honra. Advocatus trabalhavam como quem exercia uma arte, sem esperar contraprestação pecuniária; agiam em nome do reconhecimento que pudessem obter através da capacidade intelectual e da oratória. Apenas no início do século I D.C., durante o governo do imperador Cláudio, estabeleceu-se que advogados ganhariam recompensas econômicas, fixando-se o máximo de 10 mil sestércios por ação[2].

Daí a palavra “honorário” derivar do latim honorarius, constituída pelo radical honor (honra).

Quase dois mil anos depois, a tradição do trabalho de advogados mantém duas concepções históricas ainda difíceis de superar. Primeiro, com a dificuldade de se enxergar o exercício da advocacia como atividade complexa, que precisa ser valorizada e bem remunerada. Segundo – e esse é o objetivo de pontuar nesse artigo – com a resistência de identificação da ordinariedade de utilização do trabalho de advogados em típicas relações de emprego.

Avança no Congresso Nacional iniciativa legislativa que pretende, sob roupagem moderna, manter orientações da Roma Antiga para a profissão advocatícia. Essencialmente, o Projeto de Lei n. 3.736/2015 altera a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, para criar as figuras do advogado associado/advogado sócio de serviço, estabelecer regras gerais de relação havida entre esse trabalhador e sociedade de advogados e direcionar eventuais conflitos oriundos dessa vinculação a conhecimento e decisão por órgão privado.

Eis as alterações pretendidas:

Art. 1º – Esta lei altera a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, para incluir disposições sobre a sociedade de advogado, sobre o advogado associado e sobre os limites de impedimentos ao exercício da advocacia.

Art. 2º – os arts. 15, 17, 30, 54 e 58 da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 passam a vigorar com as seguintes alterações:

Art 15…………………………………………………………………………….

  • 8º – As sociedades de advogados podem ser constituídas por sócios de capital ou por sócios de capital e sócios de serviço, na forma estabelecida nesta Lei, no Regulamento Geral e nos Provimentos do Conselho Federal da OAB.
  • 9º – Nas sociedades de advogados, a escolha do sócio administrador poderá recair sobre advogado que atue como servidor da administração direta, indireta e fundacional, desde que este não esteja sujeito ao regime de dedicação exclusiva, não lhe sendo aplicável o disposto no inciso X do art. 117 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, no que se refere a sociedade de advogados” (NR)
  • 10º – Cabe ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, privativamente, a fiscalização, acompanhamento e definição de parâmetros e de diretrizes da relação jurídica mantida entre advogados e sociedades de advogados e/ou entre “escritório de advogados sócios” e o “advogado associado”, inclusive no que se refere ao cumprimento dos requisitos norteadores da associação sem vínculo empregatício autorizada expressamente pelo presente dispositivo legal.

Art. 17-A – O advogado poderá associar-se a uma ou mais sociedades de advogados ou sociedades unipessoais de advocacia, sem vínculo empregatício, para prestação de serviços e participação nos resultados, na forma do Regulamento Geral e de Provimentos do Conselho Federal da OAB.

Art. 17-B – A associação de que trata o art. 17-A dar-se-á por meio de pactuação de contrato próprio, que poderá ser de caráter geral ou restringir-se a determinada causa ou trabalho, e que deverá registrado no Conselho Seccional da OAB em cuja base territorial tiver sede a sociedade de advogados que dele tomar parte.

Parágrafo único – No contrato, o advogado sócio ou associado e a sociedade pactuarão as condições para o desempenho da atividade advocatícia e estipularão, livremente, os critérios para a partilha dos resultados dela decorrentes” (NR)

Art. 30………………………………………………………………………………………

  • 1º – A vedação de que trata o inciso I do caput não se aplica aos docentes dos cursos jurídicos.
  • 2º – Ressalvado o disposto nos arts. 28 e 29, ao servidor público regularmente inscrito na OAB é assegurado o exercício da advocacia junto a órgãos, entes ou repartições públicas nos quais não esteja lotado, ou sobre os quais não possua poder de influência por sua condição funcional, não lhes sendo aplicável o disposto no inciso XI do Art. 117 da Lei nº 8112, 11 de dezembro de 1990 e no inciso III do art. 4º da Lei nº 8.027, de 12 de abril de 1990” (NR)

Art.54……………………………………………………………………………………….

IXX – fiscalizar, acompanhar e definir parâmetros e diretrizes da relação jurídica mantida entre advogados e sociedades de advogados e/ou entre “escritório de advogados sócios” e o “advogado associado”, inclusive no que se refere ao cumprimento dos requisitos norteadores da associação sem vínculo empregatício prevista nos parágrafos anteriores.

XX – solucionar, via tribunal de arbitragem e/ou mediação, as questões relativas à relação entre advogados sócios e/ou associados e os escritórios de advocacia, bem como homologar quitações anuais de honorários entre advogados e sociedades de advogados.

Art.58……………………………………………………………………………………….

XVII – fiscalizar, por designação expressa do Conselho Federal, a relação jurídica mantida entre advogados e sociedades de advogados e/ou entre “escritório de advogados sócios” e o “advogado associado” em atividade na circunscrição territorial de cada Seccional, inclusive no que se refere ao cumprimento dos requisitos norteadores da associação sem vínculo empregatício prevista nos parágrafos anteriores.

XXIII – solucionar, via tribunal de arbitragem e/ou mediação, por designação do Conselho Federal, as questões relativas à relação entre advogados sócios e/ou associados e os escritórios de advocacia sediados na base da seccional, bem como homologar quitações anuais de honorários entre advogados e sociedades de advogados.

O projeto legislativo não é isolado e deve ser visto em foco mais amplo. Nos últimos anos, houve contínuo avanço de legislações para regulação de figuras contratuais tendentes ao mascaramento de vínculo de emprego. Exemplos recentes são as figuras de parceiro de salão de cabelereiro (Lei n. 12.592/2012), condutor autônomo rodoviário (Lei n.13.103/2015) e trabalhador autônomo exclusivo (Lei 13.467/2017). Como se verá adiante, o PL 3.735/2015 compartilha as mesmas consequências: disfarce da relação de emprego, precarização dos direitos de trabalhadores e redução de arrecadações ao Estado.

 

Democratização da proletarização: ela chegou para todos

Marx reconheceu como proletários os trabalhadores que, apenas possuindo para mercancia a própria força de trabalho, a vendiam em troca de salário. Em poucas palavras, considera-se proletário o grupo que tem o trabalho posto em mercado no modo de produção capitalista, tanto nas relações técnicas como nas de classe.

A avanço da proletarização das profissões liberais é fenômeno amplo e, basicamente, se caracteriza por dois aspectos: intensificação da exploração do trabalho imaterial e com as novas formas de organização do trabalho. A compreensão da absorção subordinada de profissionais liberais em engrenagens de grandes empreendimentos também integra a descoberta de uma persistente erosão de autoridade de expertises e necessidade permanente e massificada de atividade intelectual profissionalizada.

A Terceira Revolução Industrial caracteriza-se pela descentralização geográfica, produção em redes, integração horizontal, sistema just in time, entre outros desdobramentos. As novas demandas obrigam a adoções de diferentes fórmulas produtivas. Essa diversificação acompanha a instrumentalização dos modos de emprego do trabalho vivo e alcança prestações de serviços originalmente realizadas por profissionais liberais.

Ainda que seja claro o quanto o trabalho de profissões liberais ocorre com significativas diferenças em relação às atividades industriais, são elas cada vez mais submetidas a processos estruturais análogos aos da maioria dos trabalhadores assalariados.

Nos estudos de Antunes, a principal mutação contemporânea no mundo do trabalho está na intelectualização. Em resumo, posta-se no protagonismo da ciência, no valor intelectual do trabalho no interior do processo produtivo[3]. A característica que se ressalta nos anos do pós-fordismo é da utilização intensa dessas formas de trabalho até então raras e individualizadas, muitas vezes de emprego propiciado tanto pela tecnologia, como pela massificação de demandas. É precisamente essa característica da nova fase do capitalismo que vem levando à contínua subproletarização do trabalho.

A intensa competitividade obriga as empresas a buscar a inserção – quando não a simples permanência – no mercado a partir do contínuo corte de custos dos fatores de produção. Em grande parte, a pressão é descontada sobre o caro trabalhador formal. Há intensa opção pela terceirização e substituição por outras formas de pactuação, recontratando-se blocos de trabalhadores na base de prestação de serviço, remunerados na forma estrita do trabalho pontualmente executado.

O sociólogo anglo-polonês Zygmunt Bauman analisa as novas organizações do trabalho em perspectiva de colocar o fenômeno como uma das causas da crescente insegurança dos indivíduos. Tal instabilidade, como estilo de vida e rotina contemporânea da maioria dos indivíduos, seria a causa para a crise da república e enfraquecimento do espaço público privado. Para Bauman, mesmo o clássico posto de trabalho emprego que se pode obter não mais possui blindagem contra as incertezas do futuro, pois a economia política da insegurança acabou com as garantias históricas de segurança do trabalho. Reconhece, frente às novas formas de contratação das massas de trabalhadores, a noção de flexibilidade como negação da segurança e impedimento à formação de organizações aptas a apresentarem oposição coletiva eficaz[4] [5].

Se no apogeu do taylorismo/fordismo a pujança de uma empresa mensurava-se pelo número de empregados que nela exerciam sua atividade de trabalho, pode-se dizer que a era da acumulação flexível e da empresa enxuta merecem destaque, e são citadas como exemplos a serem seguidos aquelas que dispõem de menor contingente humano e que, apesar disso, têm maiores índices de produtividade.[6]

Assim, uma das consequências mais marcantes das transformações no processo de produção, no que se refere ao mundo do trabalho, é o aumento acentuado das inúmeras formas de subproletarização ou precarização do trabalho. Paralelamente, coloca-se um quadro de níveis explosivos de desemprego estrutural, que se estabilizou em cerca de 192 milhões de pessoas por todo o planeta, mas com crescimento de trabalhos precários.

As profissões liberais não escapam desse cenário e a situação de médicos é uma das mais óbvias. Os processos de diagnóstico e tratamento são cada vez mais complexos e dependentes de múltiplos saberes. A atuação isolada de profissionais médicos passam a ser raras e esses ou prestam serviços limitados a suas especialidades para pacientes pontuais, ou tornam-se assalariados em grandes hospitais. Não raro, colocam-se em situação híbrida, submetendo-se a medições comandadas por empresas de planos de saúde.

Seja qual for a profissão liberal, a autonomia do processo do trabalho não guarda qualquer relação com a classificação da relação formada com o tomador. O interesse do agenciador do trabalho desloca-se do tradicional controle de método para a cobrança de eficiência. Assiste-se a alienação econômica e organizacional, mas não há alienação técnica.

Essa nova parcela de proletariados recebeu a adequada denominação de operários hifenizados por Huw Beynon, sociólogo do trabalho inglês citado por Antunes[7]. São trabalhadores hifenizados os que se submetem a trabalho-parcial, trabalho-precário, trabalho-por-tempo, trabalho-por-hora, trabalho-cooperativado, trabalho-autônomo, trabalho-terceirizado, trabalho-intermitente. Tais modalidades de labor crescem de modo espantoso, na medida da expansão da prática neoliberal e extrema competitividade no mundo do capital.

Conforme se verá adiante, a hifenização também atinge a advocacia brasileira, a partir da fabricação de novas classes de causídicos.

 

De gravata ou de tailleur, a hifenização da advocacia

Especialmente no Brasil, os advogados sempre usufruíram de singular prestígio, ocupando status social próprio de profissão imprescindível à vida política[8].

Mas as mudanças ocorridas no mundo trabalho causam impactos também na atividade da advocacia. As transformações experimentadas em decorrência do processo de reestruturação produtiva e a investida da mentalidade de extrema competitividade empresarial nos serviços jurídicos projetaram obrigações procedimentais sedimentadas na qualidade, eficiência e massificação de procedimentos.

No que diz respeito ao lugar ocupado pelos advogados na divisão técnica do trabalho, as tarefas realizadas diariamente ocorrem com redução de autonomia, fragmentação de tarefas e intensificação do trabalho. Não se nega a permanência de advogados que atuam de forma autônoma e realizam todas as atividades típicas da profissão, mas essa é, cada vez mais, rotina que se desloca ao campo da exceção.

Por outro lado, os advogados também passam a se aproximar de outras atividades proletárias em termos de condições de vida: longas jornadas, dificuldades de desconexão, organização em turmas especializadas, controle de apresentação pessoal e planejamento externo das rotinas.

O Projeto de Lei n. 3.736/2015 insere-se em um mais amplo movimento compartilhado em certos setores econômicos de substituição da força de trabalho regrada pela legislação trabalhista por relações contratuais precarizadas. Mas o faz sem esforço de abandonar a quase sempre necessária subordinação jurídica.

Em boa parte, o fenômeno acompanha a popular expressão “pejotização”, que – em apertada síntese – relaciona-se com a contratação de pessoas naturais para realização de atividades pessoais, contínuas e onerosas, em trabalho orientado e fiscalizado, mas através da aparência de pactuação com pessoa jurídica ou trabalhador autônomo especialmente constituído.

O cotidiano de trabalho nos fóruns de todos os ramos do Judiciário brasileiro já demonstra largas experimentações paralegais na utilização de profissionais jurídicos em atividades permanentes de grandes escritórios. São cada vez mais comuns construções de novas figuras de advogados contratados, normalmente caracterizados pela pouca experiência, amplas jornadas e contínua marginalização econômica. Na rotina forense, recebem apelidos hifenizados, como advogados-audiencistas, advogados-cotinhas e advogados-minoritaríssimos. São, ou profissionais contratados rotativamente para atos de menor complexidade em processos massificados (audiencistas), ou causídicos que atuam em continuidade e subordinação a grandes escritórios, mas que se apresentam formalmente como sócios de baixíssima participação.

Esse novo fenômeno de proletarização da advocacia atinge, principalmente, jovens e ainda pouco experientes advogados. Mesmo reconhecedores que são submetidos a fraudes, mas premidos pela essencial necessidade de sobrevivência, igualmente submetem-se a relações fraudulentas e altamente precarizadoras de seus direitos.

O conhecimento da formalidade da lei – tanto pelos contratados, como pelos contratantes – está longe de afastar a constância da operação adulteratória. E muito menos a absolve. O Direito do Trabalho nacional a todos obriga porque tem significado transcendente aos interesses meramente individuais. O conhecimento que a prática constitui fraude não a retifica; ao contrário, a faz revestir de claros contornos dolosos, justamente por quem tem a obrigação de dar exemplo de obediência à lei.

 

Engolindo sem mastigar: a advocacia de massa

No campo da advocacia, a proletarização profissional está em grande parte ligada ao fenômeno das demandas de massa, conduzidas por grandes escritórios estruturados como legítimas e eficientes empresas. Os processos estratificados, individualizados e que necessitavam de soluções artesanais são próprios do começo do século passado e demandavam condução por profissionais que atuavam também individualmente, em escritórios próprios. Mas, desde o final do século XX, experimenta-se contínuo avanço para litígios padronizados e que demandam trabalho jurídico massificado, repetitivo e conduzido por muitos profissionais. Há necessidade de se manter largo contingente de trabalhadores tecnicamente habilitados e pressiona-se para a redução de custos a partir da diminuição de encargos sociais – notadamente, direitos trabalhistas e recolhimentos previdenciários.

Soma-se ambiente de altíssima competitividade entre advogados, com gigantesco número de novos formados e que têm dificuldades de estabelecimento como profissionais legitimamente autônomos. Passam, assim, a atuar como “advogados hifenizados”, ordinariamente em relações de emprego mascaradas a partir de elastecimentos do conceito de “advogado associado”.

A Lei 8.906 de 1994 (Estatuto da Advocacia) estabeleceu duas modalidades de trabalho de advogados em sociedades de advogados: os advogados sócios (arts. 15 a 17) e advogados empregados (arts. 18 a 21). Em extrapolação, o art. 39 do Regulamento Geral do Estatuto da OAB criou figura não prevista em lei, o “advogado associado”, criatura híbrida e que tem por mais marcante caraterística a supressão geral de direitos trabalhistas.

Em reação a esse movimento fraudatório, são cada vez mais comuns ações trabalhistas de advogados que buscam – e devidamente obtêm – reconhecimento de que trabalhavam como autênticos empregados em grandes escritórios. Ordinariamente, são profissionais que se submetem a longas jornadas, recebem baixíssimos salários, não recolhem contribuições previdenciárias e não têm direito a benefícios trabalhistas básicos, como férias, 13º salário e vale transporte.

O cotidiano forense demonstra que a tecnologia da fraude ordinariamente passa pela caracterização formal de “advogado associado”, com reduzidíssima integração societária, sem efetiva participação em resultados e em que há exigência de trabalho com todas as características de empregado.

 

Esse embaçado panorama normativo

O Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/1994) regula a atuação das sociedades de advogados, estabelecendo dois modos de atuação: a) a partir de sociedade civil prestadora de serviços (art. 15); b) com a contratação de advogado empregado (art. 18).

Como toda sociedade, a da modalidade de advogados necessita contar com o elementar requisito de affectio societatis: a comum intenção dos sócios no compartilhamento de perdas e lucros. Necessitam os sócios assumir mutuamente responsabilidades e riscos pelo empreendimento, partilhando a sorte que a empresa tiver. Trata-se de elemento subjetivo, psicológico. Há incompatibilidade com o contrato de trabalho, vez que – como ensina Orlando Gomes – “o operário que luta pela participação nos lucros, rejeita redondamente toda participação nas responsabilidades” [9].

Para averiguação do ânimo societário é imprescindível, portanto, que os sócios cooperem para alcance do fim compartilhado, bem como que cada um contribua com os recursos econômicos necessários para a formação e desenvolvimento da atividade. Por isso, todos os sócios de uma sociedade de advogados devem ser advogados dotados de plena capacidade de exercício profissional. Nesse sentido, é expresso o art. 16 da Lei n. 8.906/1994.

O Provimento n. 169/2015 do Conselho Federal da OAB prevê em seu art. 2º a formação de sociedade com “sócios patrimoniais” e “sócios de serviço”. Parece evidente o atentado ao próprio art. 16 do Estatuto mãe, o qual expressamente proíbe formação se sociedade com característica empresária. Também atenta contra elemento basilar da atividade da advocacia, vedatória à mercantilização (art. 5º da Lei n. 8.906/1994).

Ao que se vê, o próprio Estatuto da Advocacia veda a ocorrência de sócio de investimento em sociedades de advogados.

O Regulamento Geral da Advocacia, art. 39, também criou o chamado “advogado associado”, figura totalmente estranha aos básicos contornos previstos na lei. Deixando de observar a limitada delegação de regulamento para sociedade de advogados, há evidente extrapolamento e inaplicabilidade. Além do que – e ainda mais evidente – não cabe Conselho Federal da OAB a criação de normas de afastamento da legislação trabalhista universal.

 

Projeto de Lei n. 3.736/2015

No ambiente contemporâneo de mascaramento de relações de emprego em escritórios de advocacia, o presente projeto de lei busca oferecer solução de legitimação para a ilegalidade sugerida no Regulamento. Pretende-se permitir a formalização da fraude, com contração de advogados por grandes escritórios, garantindo subordinação jurídica, mas sem a contrapartida de direitos trabalhistas. Vejamos algumas evidências:

 

“Sócio de serviço”, quero um para chamar de meu

O Código Comercial brasileiro, de 1850, possuía figura parecida com a que se pretende inaugurar com o PL. Tratava-se da sociedade de capital e indústria, prevista no art. 317, pela qual um sócio aportava capital ao empreendimento e outro ingressava com a força de trabalho. Ante a evidente confusão com a relação de emprego, foi pouquíssimo utilizada no Brasil e banida dos códigos civis europeus.

É bem verdade que o Código Civil de 2002 permite que sócios contribuam apenas com serviços (art. 997, V) e, em compensação, participam dos lucros, mas não respondem por eventuais perdas do empreendimento. Evidentemente, tal modalidade direciona-se ao sócio que possui saber específico e não compartilhado por aquele que integraliza recursos econômicos. Compondo-se saberes e capacidades diferentes, torna-se possível efetivar o esforço societário.

O projeto legislativo subverte os fundamentos da sociedade de advogados e aparenta interesse em ressuscitar possibilidade de sócio apenas ter participação com trabalho, sem efetivo affectio societatis. Para tanto, o substituto do PL, além de buscar legalizar o “advogado associado” introduziu a figura do “sócio de serviço”. Em resumo, permite-se que, em uma sociedade de advogados, haja, além de sócios de capital, outros que apenas integram o esforço societário a partir do trabalho individual, sem aportes econômicos ou qualquer outro elemento de averiguação de integração em esforço societário.

Há duas incompatibilidades entre as figuras do sócio de serviço do Código Civil e a da união de advogados. Primeiro, porque nas sociedades de advogados, todos os sócios precisam ser advogados (art. 16 da Lei n. 8.906/1994). Segundo – e em razão do primeiro –, o próprio Estatuto da OAB prescreve responsabilidade passiva integral de todos os seus sócios (art. 17).

Mas a figura proposta apaga ainda mais o elemento de affectio societatis. Não se consegue cogitar de compartilhamento de esforços e aportes se um dos supostos sócios já possui toda a estrutura física e carteira de clientes, enquanto outro ingressa apenas para trabalhar no que já existe. Apenas excepcionalmente algo assim poderia ser legítimo, caso o advogado ingressante seja profissional famoso e a própria integração do quadro já signifique aporte de valor econômico considerável. Mas não parece ser esse o vetor do projeto de lei.

Preocupa que o texto legal proposto não indica mínima conceituação da nova figura e a única preocupação posta está em afirmar que o “sócio de serviço” não tem vínculo empregatício. E é só isso: de forma inusitadamente lacônica, o proposto art. 17-B refere que a associação com o advogado ocorre sem vínculo de emprego. Eximindo-se de definir critérios e requisitos materiais – retomando-se concepções oitocentistas –, apresenta campo aberto a fraudes geradas por simples imposições de formas.

Há graves consequências no texto legal pretendido. Essencialmente, os elementos conceituais de empregado seguem inalterados nos arts. 2º e 3º da CLT e, conforme aplicação do princípio da primazia da realidade, precisam ser averiguados pontualmente. Essencialmente, deve ser produzida análise fática para averiguação do trabalho ser realizado por conta e risco do advogado associado, com liberdade de condução das atividades, compartilhamento de riscos e efetivo ânimo societário. Fora desses elementos, há usual relação de emprego.

A sociedade de advogados é, fundamentalmente, uma sociedade de pessoas, direcionada a prestação de serviços jurídicos. O oferecimento de força de trabalho contínuo especificamente na atividade finalística, em empreendimento cujo capital pertence a outrem, é um dos mais basilares elementos da relação de emprego. A pitoresca figura do sócio de serviço somente faria sentido se o outro sócio não dominasse a técnica de trabalho a ser desenvolvida na sociedade, o que jamais ocorrerá em sociedade de advogados.

Em sociedade em que todos são advogados, apenas há diferenciação entre “sócio de serviços” e “sócio de capital” na circunstância de que o último é quem detém os meios de produção e, portanto, contrata, fiscaliza e remunera o primeiro. Não há efetiva diferença com a relação de emprego.

 

“Divisão” de resultados

A circunstância de recebimento de importâncias variáveis não exclui a possibilidade de reconhecimento de salário mascarado. Retiradas obtidas por qualquer sócio seguem os resultados econômicos do empreendimento, de modo a se admitir hipótese de que valor algum seja conquistado em determinado mês. Em legítimas sociedades de advogados, com efetivos sócios, os valores das retiradas definem-se pelos resultados do escritório ou, pelo menos, de acordo com o produto positivo dos processos a que o profissional está ligado.

As ordinárias adulterações verificadas na atualidade com “advogados associados” mostra que é comum o atendimento da formalidade de participação societária com quinhões insignificantes e que, na prática, permitem praticamente nenhuma distribuição de resultados.

A efetiva remuneração desses advogados, hoje objeto de fraudes, ocorre com pagamentos de verbas formalmente denominadas “ajuda de custo”, “verbas de custeio”, “auxílios” e tantas outras criativas expressões correlatas. Tratam-se de parcelas fixas ou com baixíssima variação, mas sempre desvinculadas de resultados econômicos e perfeitamente equivalentes a salários. Servem para remunerar o trabalho contratado e atuam na sonegação de diversas outras parcelas legalmente obrigatórias à relação de emprego e necessárias a dignidade de todos os trabalhadores.

O projeto de lei não altera esse estado de coisas. Nada estabelece sobre efetiva divisão dos resultados, não indica critérios objetivos e, portanto, não vence a inexorável perspectiva adulterante.

O PL nem mesmo teve preocupação de indicar mínimo de cotas que deva possuir o sócio de serviço. E muito menos assegura condições para que se tenha acesso à documentação contábil, e consequente aferição de resultados da sociedade. Grotescamente, não se nega que o advogado associado tenha 0,000000000000000000001% do capital social.

 

Indefinição de atribuições

A subordinação jurídica é o mais poderoso elemento caracterizador da relação de emprego e se materializa tanto com fiscalização e distribuição dos serviços (subjetiva), como na identificação da importância do posto de trabalho no cotidiano do empreendimento (objetiva).

A simples execução de atividades intelectuais não impede a averiguação de subordinação, a qual é sempre jurídica porque guarda relação com o pactuado entre as partes. Nos trabalhos altamente intelectualizados, tal como promovidos por advogados, a subordinação subjetiva costuma ocorrer na forma potencial, embora não sejam incomuns profundos controles de horário e produtividade.

Modalidade também reconhecida de subordinação está na vertente estrutural. O trabalho do advogado é essencial a escritórios de advocacia, fazendo com que o serviço seja permanente e plenamente integrado ao seu cotidiano.

O Projeto de Lei não apenas mantém a subordinação objetiva (o “advogado associado” realiza atividades essenciais do escritório), como assegura a subordinação subjetiva, na medida em que prevê poder de distribuir trabalho ao profissional. Ao indicar que a pactuação possa ocorrer em caráter geral, acaba por permitir direcionamento de demandas ao “advogado associado”, conforme necessidades organizacionais do escritório. Assegura-se, assim, a subordinação subjetiva e avança-se a elemento exclusivo da relação de emprego, o chamado direito de variação do contrato.

Com isso, tem-se presente não apenas a evidente subordinação estrutural, como se mantem a própria, e mais elementar, subordinação subjetiva.

 

Efeitos previdenciários e fiscais

Relações jurídicas simuladas com o fim de afastar reconhecimentos de vínculos de emprego possuem efeitos gerais de achatamento de rendimentos, sonegação de benefícios trabalhistas, promoção de deslealdade concorrencial. O PL não apenas assegura tudo isso, mas vai além e alcança as searas previdenciária e fiscal.

A perspectiva de substituição de postos de trabalho emprego por trabalhadores autônomos, ou formalmente associados, apresenta horizonte de ampla redução de recolhimentos fiscais e previdenciários. Dados do IBGE indicam que cerca de 80% dos autônomos não recolhem para o INSS, contribuindo para quadro de insegurança previdenciária.

Tais como outros trabalhadores, advogados afastados da Previdência Social, não tem proteção contra doenças, acidentes e outros riscos sociais. As advogadas grávidas, além de não receberem licenças pagas, fatalmente submetem-se à conhecida prática de dispensa no retorno ao trabalho.

As fraudes também se estendem ao campo fiscal. A utilização de haveres em rubricas formalmente não reconhecidas como salário dificultam – quando não impedem simplesmente – recolhimento de imposto de renda, esvaziando rendas de manutenção do próprio Estado.

 

Tribunal de arbitragem

A projetada litigiosidade da relação entre advogados associados e donos de sociedades de advogados não encontra bom encaminhamento no projeto de lei. As pretendidas redações aos art. 54, XX e art. 58, XXIII preveem solução através de tribunal de arbitragem e/o mediação mantido pela própria Ordem dos Advogados do Brasil.

O projeto fecha-se para também dificultar a devida fiscalização estatal para com a relação jurídica pretendida. O art. 54, IXX e o art. 58, XVII intentam substituir exames corretivos de legalidade operados tradicionalmente por órgãos de Estado por organização privada e corporativa, o próprio Conselho Federal da OAB.

Nos últimos duzentos anos, o direcionamento para órgão único estatal da atribuição de conhecimento e decisão sobre dissídios entre particulares foi uma das maiores conquistas de civilização. Como nas demais nações civilizadas, no Brasil, o princípio de inafastabilidade da jurisdição garante a todos acesso ao Judiciário para solução de situações litigiosas (art. 5º, XXXV da Constituição Federal). Os dispositivos propostos subvertem essa ordem e fabricam notável embaraço no direcionamento das divergências para órgão de Estado isento e não orientado por interesses coorporativos. Nessa parte, o PL 3736/2015 faz-se claramente inconstitucional.

Além de subverter regra de isenção e neutralidade do organismo de controle e supervisão, trata-se de iniciativa que atenta contra Convenção Internacional ratificada. A Convenção n. 81 da Organização Internacional do Trabalho tem vigência no Brasil desde 1958 e determina existência de organismos estatais, constituídos por funcionários públicos, para inspeção do trabalho. Em nosso país, são os auditores fiscais do trabalho quem têm responsabilidade pela fiscalização e, portanto, não podem ser substituídos por organismo privado.

Os entraves acoplados ao projeto para fiscalização e conhecimento jurisdicional dos litígios apenas confirmam a percepção de direcionamento fraudatório na prática que se pretende legalizar.

 

Amistoso tratamento tributário

Além do campo trabalhista, o projeto de lei guarda inadequações de ordem tributária. Especialmente na redação do art. 15, § 10, trazido no substitutivo do Deputado Hildo Rocha. O dispositivo define base de cálculo de tributos como sendo o resultado da subtração da receita da parte associada sobre a receita bruta. Pretende-se com isso, promover artificial redução na base de cálculo tributária, chamando à consequente redução de arrecadação pelo Estado.

Em seu art. 119, a Lei n. 12.973/2014 definiu o conceito de receita bruta. Enuncia: “A receita bruta das vendas e serviços compreende o produto da venda de bens nas operações de conta própria e o preço dos serviços prestados”. Também o STF firmou definição, registrando a base de conteúdo como o resultado financeiro da atividade empresarial. Anotou o Ministro Ayres Britto: a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende que receita bruta e faturamento são sinônimos, significando ambos o total dos valores auferidos com a venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços[10]

Em poucas palavras, “receita bruta” é a receita total decorrente das atividades-fim da organização, todo ingresso econômico habilitado a promover soma patrimonial e, ordinariamente, é sobre essa referência que tributos incidem.

O PL 3736/2015 não observa esse conceito e trata inadequadamente os valores alcançados aos advogados. Os valores que poderão ser repassados a esses não fazem mero trânsito no caixa, mas efetivo ingresso tributável. A circunstância de posterior distribuição de valores ao advogado associado não subverte a integração dessas importâncias na receita bruta pois, em sociedades saudáveis, são os sócios que definem se e o quanto será distribuído.

A redução pretendida atenta às construções avalizadas pelo Supremo Tribunal Federal de conceitos de receita bruta e respeito à capacidade contributiva, imprescindíveis elementos garantidores da justiça tributária. Há promoção de tratamento injustificadamente mais benéfico em comparação a outras sociedades.

As mutilações na base de cálculo, escondendo valores de distribuição aos sócio, fazem desconsiderar a efetiva riqueza da sociedade de advogados e resulta em tributação artificializada e inexoravelmente reduzida.

 

Conclusões

A proletarização da advocacia é realidade crescente, fazendo comuns construções de relações jurídicas que disfarçam relações de emprego e produzem precarização de condições de trabalho, achatamento de rendimentos e redução de arrecadações estatais. O PL 3.735/2015 segue na institucionalização da prática.

Em grande parte, proletarização da profissão do advogado acompanha a ampliação da advocacia de massa e a consequente organização de seus escritórios como grandes, eficientes e enxutas empresas.

As fraudes na formação de vínculos de emprego ocorrem principalmente a partir de trabalhadores formalmente apresentados como sócios ou associados, mas com reduzidíssima participação no capital social e praticamente nulo poder de comando no empreendimento.

A pitoresca figura do advogado sócio de serviço aprofunda o avanço da proletarização e o projeto legislativo que o agasalha apresenta diversas inconsistências. Na forma como está atualmente redigido, serve apenas para ampliar o horizonte de diminuição de uma das mais importantes profissões garantidoras do estado de direito.

 

Referências

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003

BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

GOMES, Orlando. Curso de direito do trabalho. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1998.

HARDT, Michael & NEGRI, Antonio; Império. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2004.

 

[1][1] O presente artigo foi produzido a partir de nota técnica da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra, também de redação proposta pelo autor, para o Projeto de Lei n. 3.736/2015.

[2] Na mesma época, também se estabeleceu a obrigatoriedade de registro profissional, fazendo com que advogados devessem ter inscrição em órgão corporativo.

[3] ANTUNES, p. 124.

[4] BAUMAN,  p. 181-182.

[5] No mesmo sentido, argumentam Hardt e Negri, para os quais “o medo da violência, da pobreza e do desemprego é, no fim das contas, a força primária e imediata que cria e mantém essas novas segmentações. O que está por trás das diversas políticas das novas segmentações é uma política da comunicação. Como argumentamos antes, o conteúdo fundamental das informações que as enormes empresas de comunicação apresentam é o medo. O constante medo da pobreza e a ansiedade sobre o futuro são as chaves para criar entre os pobres uma disputa pelo trabalho e manter o conflito no proletariado imperial. O medo é a garantia definitiva das novas segmentações.” (NEGRI & HARDT, p. 360)

[6] ANTUNES, p. 53.

[7] BEYNON, apud ANTUNES, p. 177.

[8][8] Apenas na Câmara dos Deputados, a profissão “advogado” foi a mais declarada entre os eleitos, com 43 deputados federais. (http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/475472-80-DOS-DEPUTADOS-FEDERAIS-ELEITOS-TEM-NIVEL-SUPERIOR.html)

[9] GOMES,  p. 154.

[10] RE 656284 AgR, Relator:  Min. Ayres Britto, Segunda Turma, julgado em 28/02/2012, Processo Eletrônico DJe-121, divulgado 20-06-2012 e publicado 21-06-2012.

 

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