NOVA IORQUE É BOM, PARIS É DEMAIS

Recentes decisões judiciais de EUA e França consolidam jurisprudências no reconhecimento dos trabalhadores de apps como empregados.

Rodrigo Trindade

No final do século XVIII, França e Estados Unidos protagonizaram as duas mais importantes revoluções burguesas do período. Nas décadas seguintes, e com enorme variedade de tons, como bem sabemos, o ideário espalhou-se pelo globo. Neste início do século XXI, são os judiciários dos dois países que, bem guardadas as proporções, vêm produzindo importantes decisões. E se habilitam a também influenciar o planeta.

Quando em 30 de abril de 2018, a Suprema Corte da California proferiu decisão em ação coletiva reconhecendo que trabalhadores de aplicativos deviam ser considerados empregados, muitos receberam como mais uma das extravagâncias daquele que é considerado o mais progressistas dos estados americanos. Pelos mesmos, motivos, a nova legislação que foi em seguida aprovada no parlamento estadual, e que consolidou o entendimento jurisprudencial, foi vista como algo meramente “local”. Mas tal qual a também californiana tecnologia que anima a gig economy planetária, a compreensão sobre status jurídico dos trabalhadores de aplicativos parece se espalhar tanto em outros estados do país como na construção de uma tendência jurisprudencial internacional.

Apesar da lei californiana guardar as fronteiras estaduais, em grande parte suas razões vêm sendo aplicadas em outras importantes decisões no território estadunidense. No final de julho passado, a Justiça Federal do Estado de Nova Iorque acolheu pedido de ex motorista da Uber local e determinou que fosse considerado como empregado, para fim de recebimento de seguro desemprego. Nos EUA, os recursos do seguro desemprego são arrecadados pela União, mas seguem certas regras de recebimento definidas pelos estados. Poucas semanas depois, foi a vez da Suprema Corte do estado da Pennsylvania confirmar o mesmo entendimento.

No Canadá, a Corte Suprema abriu a porta para que os motoristas da Uber passem à próxima etapa de luta para reconhecimento como empregados da multinacional. Em acórdão produzido em 27 de junho passado, o mais alto tribunal do país confirmou decisão de ação coletiva visando garantir um salário mínimo, férias remuneradas e outros benefícios para motoristas da plataforma. A corte de apelação de Ontario avaliou uma cláusula do contrato de serviços da Uber, que exige que todos os litígios sejam submetidos à arbitragem nos Países Baixos como equivalente a terceirizar, ilegalmente, uma norma de emprego. O tribunal superior confirmou que tal convenção de arbitragem interdita, na prática, os motoristas a terem acesso a uma resolução de litígio determinada pela lei canadense, impondo restrição excessiva e debilitadora da primazia do direito nacional.

Um pouco antes, em 04/3/2020, a Corte de Cassação da França publicou importante decisão em que se manifestou sobre existência de vínculo do emprego entre condutor e a Uber local. A empresa de tecnologia mantém padrão global também em suas defesas e argumentou se tratar de trabalho autônomo, sem qualquer tipo de imposição de ordens, livre rejeição de trabalhos e possibilidade de atuação concomitante para outras plataformas. O julgamento em primeiro grau (conseil de prud’hommes) rejeitou o pedido e então disse se tratar de relação comercial. Mas houve reforma pela Corte de Apelação e, finalmente, confirmação na Corte de Cassação. Em território galo, os chouffeurs VTC devem ser considerados empregados.

Apesar de formalmente serem contratados como autônomos, em todo o planeta vêm se somando decisões judiciais – individuais e coletivas –, bem como grandes acordos extrajudiciais, de reconhecimento de efetivo vínculo de emprego. Apenas como exemplo, em 2018, o Tribunal de Apelações do Reino Unido manteve decisão judicial que considerou todos os motoristas de Uber da área de Londres como efetivos empregados. Na Espanha, importante união sindical conseguiu êxitos judiciais no reconhecimento de vínculo de emprego entre entregadores e a empresa Glovo, afastando a formal classificação como autônomos.

Nas duas margens do Atlântico norte, os tribunais vêm atuando para atualização de seus critérios de vínculo empregatício. Nota-se uma mescla de elementos ditos tradicionais das culturas jurídicas nacionais com sintonias finas para atender as nuances do já universalizado modelo de trabalho por plataforma.

EUA

A lei da California é diretamente tributária do julgamento Dynamex. Define que trabalhadores de empresas vinculados a empresas como Lyft e Uber devem ter direitos próprios de empregados, como salário mínimo e seguros contra doenças e acidentes. As companhias também ficam responsáveis pela cobertura previdenciária (Social Security and Medicare) e seguro contra desemprego. A regra fixada na Suprema Corte Estadual, e seguida no Parlamento, é de que a condição de trabalhador autônomo em aplicativos é excepcional e apenas pode ocorrer se a empresa demonstrar a concomitância de três fatores, adotando o chamado “Teste ABC”:

  1. o trabalhador deve ser livre do controle e direção da empresa contratante, incluindo modo de execução do trabalho;
  2. os serviços não podem ser relacionados à atividade principal da empresa;
  3. o trabalhador deve estar ordinariamente integrado em outra e independente ocupação, comércio ou negócio de mesma natureza do trabalho realizado.

A escolha californiana foi por definição ampla de empregado, com critérios que exorbitam o tradicional cumprimento de ordens e fiscalização contínua e pessoal do trabalho. Cada um dos requisitos devem estar presentes para afastar a presunção do trabalhador ser um empregado.

As decisões de Nova Iorque e Pennsylvania não foram diretamente para reconhecimento de vínculo de emprego com a plataforma, mas partiram dessa suposição para o pleito de recebimento de prestações estatais próprias de empregados.

Na recentíssima decisão da Suprema Corte da Pennsylvania (caso Lowmann x Unemployment Compensation Board of Review), reconheceu-se que a Uber efetivamente controla o trabalho dos motoristas e aplica o que, no Brasil, costuma ser identificado como “poder disciplinar”. Em efetivo, há prerrogativa da empresa para excluir os condutores do quadro de trabalhadores, caso haja excessiva rejeição de corridas. A máxima corte estadual também negou a tese de liberdade de trabalho, na medida em que verificou impossibilidade dos motoristas fixarem preço e definirem clientela.

França

A decisão 374 da Corte de Cassação de Paris firmou importante balizador para a jurisprudência francesa.

No julgamento de março passado, o tribunal superior compreendeu haver típico trabalho subordinado na relação entre a Uber e seus motoristas. Avaliou que o labor se desenvolveu em integração a serviço de transporte totalmente gerido pela plataforma. A tese de autonomia foi rechaçada sob o fundamento de que o chauffeur não tinha clientela própria, nem fixava preço. Também levou em consideração que o trabalhador nem mesmo tinha conhecimento inicial sobre o destino pretendido pelo cliente, de modo a mitigar direito de escolha ou rejeição de trabalho. Por fim, considerou o direcionamento de poder à empresa de promover desconexões de condutores, a partir de recusas de corridas ou más avaliações de passageiros. Por tudo isso, reconheceu autêntica subordinação do motorista, submetido aos poderes de organização e punição, típicos da relação de emprego.

A redefinição dos elementos de subordinação passam a ser essenciais para reconhecimento de status jurídico de trabalhadores por aplicativos. Na decisão francesa, a Corte de Cassação recordou a jurisprudência consolidada em 1996, no sentido de que a subordinação se manifesta além do poder de dar ordens e punir, como através da integração a uma atividade em que o organizador determina unilateralmente condições de execução dos serviços.

Essa consolidada posição da jurisprudência francesa sobre integração do trabalhador no empreendimento organizado foi especialmente valorada para reconhecer relação empregatícia entre os motoristas e a Uber. Não na forma bruta e histórica, mas em uma concepção aberta à contemporaneidade apresentada no processo examinado. Na análise em concreto registrou-se que o serviço explorado pela Uber foi integralmente criado pela plataforma e é por ela administrado, inclusive com fixação de preço.

Brasil

No Brasil, ainda temos poucas decisões tratando do vínculo de emprego com trabalhadores de aplicativos. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal vem privilegiado a simples e bruta autonomia da vontade e vê-se rarefeitas possibilidades de uma análise contemporânea, contextualizada e atenta aos riscos sociais graves que esse tipo de trabalho impõe. Como envolve matéria fática, dificilmente essas questões chegarão à análise tanto do STF como do Tribunal Superior do Trabalho.

Também no Brasil, o elemento jurídico da subordinação pode ser analisado sob os planos subjetivo e objetivo. O segundo é o mais evidente pois tanto há completa integração do trabalho humano às engrenagens essenciais do empreendimento como formação de dependência econômica firmada com os trabalhadores.

Quanto à subordinação subjetiva, tal qual nos EUA e França, dizem as plataformas que não promovem dependência dos trabalhadores, na medida em que não impõem carga de trabalho, permitem recusas e abstêm-se de fazer avaliações do serviço. Igualmente aqui, o modelo de uberização faz com que a apreciação do trabalho possa ser inicialmente repassada ao consumidor. Mas não para aí. Após, os pontos, estrelas ou como queira a plataforma, são utilizados para qualificar, beneficiar ou prejudicar o trabalhador. Ainda que disruptiva, a subordinação faz-se presente em uma atualizada fiscalização e apreciação contínua do serviço.

As recusas de trabalho têm fortes consequências para o modelo uberizado. Em diversos aplicativos significa possibilidade de bloqueio do sistema e perda de certos privilégios ou vantagens. A chamada “gameficação” do trabalho por aplicativos faz com que haja permanente fidelidade do trabalhador aos critérios fixados pela plataforma, sempre como forma de manter padrão remuneratório apto à sobrevivência.

Futuro

Muito mais que escolher por classificações jurídicas, definir o status da relação de trabalho de motoristas de aplicativos terá consequências essenciais para o futuro das relações trabalhistas brasileiras. Em nosso país, a precarização avança em ritmo forte, impulsionada pela crise econômica e o fracasso da Reforma Trabalhista. Há estabilização do desemprego em patamares altos, mas avançam os postos de trabalho em aplicativos, sem vínculo formal, mal pagos, com longas jornadas, inseguros, adoecedores e desvinculados do sistema de previdência pública.

Mas como lembrado recentemente por Cássio Casagrande, as escolhas jurisprudenciais brasileiras também podem ter especial importância para definição do lugar em que a Justiça do Trabalho pretende se colocar. Há fortes possibilidade de se deixar levar por argumentos puramente econômicos, fidelizados a planilhas de lucros e incapazes de adequar as lentes de conceitos jurídicos tradicionais ao ambiente renovado das novas tecnologias. Ou pode-se tentar algo diferente, como lançar olhar carinhoso para decisões estrangeiras. E não esquecer jamais.

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