Decreto 9.507/2018: as portas abertas da terceirização na Administração Federal

Decreto 9.507/2018: as portas abertas da terceirização na Administração Federal

Rodrigo Trindade

 

Na esteira do julgamento da ADPF 324, a Presidência da República acaba de publicar seu decreto de regulamentação para “execução indireta, mediante contratação de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União”. O nome é extenso, mas pode chamar de terceirização federal. Durou pouquíssimo tempo a esperança de que a terceirização quase irrestrita não alcançaria o serviço público.

 

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O agora revogado Decreto 2.271/1997 limitava a terceirização a serviços de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações. O novo decreto veda objeto exclusivo dos contratos como “fornecimento de mão de obra”, mas estimula repasse de atividades com extensa utilização de trabalho humano.

Observando algumas sinalizações anteriores do próprio Supremo, o Decreto 9.507/2018 esclarece que a farra da terceirização é só um pouquinho menor que a completude. Há um mínimo de restrições e que, essencialmente, seguem o mais óbvio para a permanência de atribuições estatais realizadas por funcionários do Estado. Por evidente, não podem ser terceirizadas atividades de direção estratégica, do poder de polícia, de decisões de sanções, da outorga de serviços públicos e de categorias funcionais abrangidas no plano de cargos do respectivo órgão.

Mas para a última hipótese (categorias previstas no plano de cargos), o Decreto escava  larga a cratera: “exceto se contrariar os princípios administrativos da eficiência, da economicidade, e da razoabilidade”. A partir de conceitos tão amplos, enumera as hipóteses: “trabalho temporário” (bem amplo), “incremento temporário do volume de serviço” (bastante amplo), “atualização tecnológica” (super amplo), “impossibilidade de competição no mercado concorrencial” (mega amplo).

 

E os concursos públicos?

A Constituição de 1988 pretendeu afastar as velhas e conhecidas práticas de cabides de empregos e pagamentos de promissórias eleitorais com acessos laterais ao serviço público. Para isso, estabeleceu no caput do art. 37 a orientação de observância aos princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. Para devidamente instrumentaliza-los, ordenou no inciso II que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público. Apesar dos ainda recorrentes casos de descumprimentos, vinha funcionando, e a luta de moralização cada vez mais se ampliava para diminuir cargos comissionados e suprir funções de confiança apenas por concursados do próprio órgão.

Até que veio a Reforma Trabalhista. Com a Lei 13.467/2017, abriram-se as portas da terceirização em todas as atividades, devidamente ratificado pelo Supremo Tribunal Federal. Promotor da nova lei, a Presidência da República adianta-se para escancarar ainda mais.

Com a tradicional ânsia de terceirização no serviço público, sempre associada à criatividade semântica nacional, a tendência é estender hipóteses de terceirização em praticamente todas as áreas do serviço público. E os velhos sonhos constitucionais de combate ao nepotismo e ao apadrinhamento, de instituir uma sociedade verdadeiramente republicana, acessando funções públicas apenas possíveis a partir do concurso público? Foi-se.

 

Responsabilidade da Administração

Duas leis recentes ampliaram as condições de terceirização: Lei n. 13429/20017 e Lei n. 13.467/2017. Ao modificarem a Lei n. 6.017/1974 pouco criaram em termos de responsabilidades dinâmicas para as empresas tomadoras de serviço. Em suma, mantiveram a lógica de que o empregado terceirizado – quase sempre vítima de calotes gerais – deverá buscar primeiramente a restituição do empregador e, depois, da tomadora de serviços. Também pouquíssimo estabelece a respeito de precauções que deve tomar a cliente para contratar empresas responsáveis e economicamente saudáveis.

O Decreto 9.507/2018 vai por outra lógica, e estabelece diversos mecanismos para “blindar” o Estado de responsabilidade ante seus terceirizados.

A antiga regra de menor preço para contratação de serviços terceirizados é bastante relativizada no novo regramento. Sem detalhar condições específicas, permite-se que os contratos poderão prever “padrões de aceitabilidade e nível de desempenho para aferição da qualidade esperada na prestação dos serviços, com previsão de adequação de pagamento em decorrência do resultado”. O céu é o limite.

A busca de blindagem da Administração por eventuais prejuízos produzidos por empresas de terceirização a seus funcionários é um dos mais evidentes vetores do decreto. São criados mecanismos tendentes a exigir garantias, fiscalizar e reter recursos. Especialmente, prevê exigência da apresentação de documentação comprobatória do cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias. Também pode fazer bloqueios de valores para pagamento das férias, 13º salários e outras parcelas, inclusive com depósito pela contratante em conta vinculada específica, aberta em nome da contratada, e com movimentação autorizada pela contratante. Ante o conhecidíssimo histórico de desaparecimentos e inadimplementos, parece ser uma das únicas alternativas para saldar dívidas já consolidadas.

Deixando de haver pagamento de salários, recolhimento de INSS e de FGTS, permite-se à Administração rescindir unilateralmente o contrato, efetuar pagamentos diretos (através de garantias prévias depositadas) e aplicar penalidades. Uma estrutura isenta e efetiva para fiscalização precisará ser criada em cada órgão – e espera-se que não seja constituída por outros terceirizados.

A Administração também pode exigir no contrato que valores para pagamento de férias, 13º salário e rescisões apenas sejam alcançados para a terceirizada na ocorrência dos respectivos fatos geradores. Como alternativa para que todas as parcelas sejam devidamente pagas aos trabalhadores, pode-se exigir que as importâncias sejam previamente depositadas em conta específica, aberta em nome da contratada e com movimentação autorizada pela contratante.

O decreto prevê que o pagamento direto pela Administração não implica assunção de responsabilidade por quaisquer outras obrigações. Mas há diversos outros créditos que podem ser gerados aos empregados terceirizados por conta de seu trabalho, especialmente prejuízos oriundos de acidentes e doenças do trabalho. Aqui, prenunciam-se graves problemas interpretativos porque isentar simplesmente o Estado de todas as demais dívidas ordinariamente produzidas por terceirizadas a seus funcionários tende a ser simples decretação de calote.

 

Direitos dos empregados

Uma das maiores perversidades cometidas pela Reforma Trabalhista em relação a terceirizados diz respeito à possibilidade formal de que estes tenham salários e condições de trabalho bastante inferiores às de seus colegas diretamente contratados. O Decreto 9.507/2018 pouco avança e apenas estabelece necessidade de cumprimento das normas coletivas (de quem?), auxílio-transporte e auxílio-alimentação.

 

Futuro?

De todos os aspectos do Decreto, o que mais chama atenção é a amplitude programada.

A nova regulamentação toma caminho oposto à ordem valorativa inaugurada em 1988 de combate à corrupção a partir do estreitamento das portas de acesso ao serviço público. A terceirização na Administração não é novidade e seus efeitos são bem conhecidos. Sempre que ocorre apartada das atividades meramente instrumentais, promove distanciamento da população de agentes públicos experientes e comprometidos com a continuidade do serviço.

Se com as portas estreitas da terceirização os prejuízos já eram grandes, a abertura projeta os serviços públicos no Brasil para ambiente de menor eficiência. E fortes dúvidas de moralidade administrativa.

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