REFLEXÕES SOBRE ATAVISMOS: requisição administrativa do trabalho de profissionais da educação
Rodrigo Trindade
Em 10 dia maio de 2021, a Prefeitura de Porto Alegre dispôs em decreto sobre “requisição administrativa de serviços, empregados e professores da rede privada do ensino”. Após os considerandos, define que o prefeito pode requisitar administrativamente pessoas para trabalhar, “enquanto durar a necessidade dos serviços ora requisitados”. Neste início de 2º milênio, o reclamo é de professores, auxiliares de serviços gerais e auxiliares de cozinha e cozinheiros. Os serviços são todos os necessários ao funcionamento de escolas da rede pública municipal. O prazo inicial é de 60 dias, mas pode ser prorrogado unilateralmente pela autoridade.
A requisição de trabalho compulsório é juridicamente inusitada. Os três principais motivos perpassam a Constituição, a lei nacional e os ordenamentos internacionais.
Primeiro, em razão de que medidas extremas, com restrições a liberdades individuais e coletivas para enfrentamento de calamidades vêm tratadas nas situações restritas – como devem ser – de estado de sítio e estado de defesa (arts. 136 a 144 da Constituição Federal). São braços do estado de exceção e, para evitar arbitrariedades e ditaduras, ocorrem em hipóteses taxativas, obrigam a atuação do Congresso Nacional e, de forma alguma, permitem trabalhos forçados.
Segundo, porque a contratação de trabalhadores para substituição de grevistas é vedada pelo art. 7º da Lei n. 7.783/1989. De outra forma, estar-se-ia esvaziando o próprio direito constitucional de greve (art. 9º da Carta Magna). E, aqui, inclui-se a chamada “greve ambiental”, realizada para garantia de condições de saúde e segurança. A greve ambiental é garantida nas Convenções n. 155 e n. 166 da Organização Internacional do Trabalho.
Por fim, o trabalho no Brasil é intrinsecamente livre, e mesmo as penas de trabalhos forçados são expressamente inconstitucionais, como bem determina o art. 5º, XLVII, “c” da Carta vigente. Se obrigar trabalho como meio de penalização de sentenciados é inconstitucional, fica muito difícil reconhecer validade em indivíduos “livres”.
Não se discute nem relativiza a imprescindibilidade da educação. E muito menos ignoram-se os profundos problemas gerados nas restrições de aulas presenciais, em decorrência da necessidade do isolamento social, como estratégia para redução das contaminações pelo novo coronavírus. É sempre esperado, e especialmente valorizado, que a administração pública busque priorizar a educação, mas chama atenção o tratamento escolhido, ainda que com as melhores intenções, ao trabalho de homens e mulheres.
Embora o decreto municipal traga previsão do pagamento de “indenização” aos arrebanhados, nada trata sobre o que é essencial a qualquer trabalho dito “livre”: a própria liberdade de disposição ao serviço. Afinal, falamos de “requisição” e requisitado não se manifesta, requisitado trabalha.
Sem lastro legal, ficamos com as explicações históricas e sociológicas. O tratamento de pessoas, desembaraçadamente oferecidas, disponíveis e requisitadas não é algo exatamente novo na humanidade. Mas também não pode ser corriqueiro nesta quadra histórica. Porto Alegre é a capital mais ao sul do país que recebeu 47% do total de homens e mulheres desembarcados escravizados em todo o continente americano. Na América – e especialmente no Brasil – o fenômeno prolongado da escravidão acabou se impondo como traço distinto da cultura nacional. E segue animando modos de tratar e ver as pessoas que vivem do trabalho.
O decreto municipal assemelha-se a um atavismo: o que em biologia define-se como manifestação acidental tardia de uma programação genética primitiva. Retoma-se o tratamento do trabalho humano brasileiro como algo livremente disposto, comercializado, requisitado por quem tem poder de colocar ordens. E segue vindo em papel timbrado.