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Justa causa e vacinação compulsória – risco quanto à fertilidade feminina.

Rafael da Silva Marques

Juiz do Trabalho. Doutor em Direito Público pela Universidade de Burgos (Espanha). Membro da Associação Juízes para a Democracia

No momento em que, mesmo que de forma tímida, brasileiros começam a ser vacinados contra o corona vírus, no mundo do trabalho surgem certas situações preocupantes. Dentre tantas posso destacar dúvida surgida no meio jurídico, a de ser possível ao empregado negar-se a receber a vacina, quando e caso exigido pelo empregador. E mais, se está autorizado, mantendo o pacto de trabalho intacto, a empregada recusar a vacina sob a alegação de receio quanto à sua fertilidade.

Não vou discutir gravidade de pandemia e nem questões atinentes às crises do capitalismo, sistema econômico que apenas funciona com altos índices de exploração ambiental e humana. São situações que perfeitamente podem trazer desastres em nível de meio ambiente, humano e epidêmico, e que poderia afastar conceitos de imprevisibilidade e emergência[1].

Pois bem, quanto à questão do trabalho, e em especial à relação de emprego, é fácil saber que toda ela é um acerto de trato sucessivo, que agrega direitos e obrigações para ambas as partes, conforme o pacto vai se estendendo. Além da obrigação principal de cada um dos contratantes – pagar salário e prestar trabalho – empregador e empregado (artigos 2º e 3º da CLT respectivamente), há uma série de outros deveres, todos elencados expressa ou genericamente na Constituição, leis, normas coletivas de auto composição ou regulamento de empresa. Nesse sentido estão os artigos 5º, 7º e 8º da CF/88, 29, 157, 158, 444, 468, 482 e 483 da CLT, apenas para citar alguns, e que se somam às portarias da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia.

Dentre as obrigações do empregado está, como dito, além de prestar trabalho, observar as normas de segurança e medicina do trabalho e colaborar com a empresa na aplicação dos dispositivos do capítulo da segurança e da medicina do trabalho, artigo 158, I e II, da CLT. Assim, constitui-se ato faltoso a recusa injustificada à observância das instruções expedidas pelo empregador e o uso dos equipamentos de proteção individual fornecidos pela empresa, parágrafo único do mesmo artigo 158 da CLT. Estes dispositivos são fundamento de validade da NR-1, redação dada pela portaria 6.730/20, e que trata do gerenciamento dos riscos ambientais no local de prestação laboral.

Esta norma faz obrigatória, pelo empregado, a observância das orientações de higiene e segurança do trabalho e potencialmente empurra para ele eventual ato faltoso em caso de ação ou omissão. Ou seja, poderá o empregador, em razão de seu poder disciplinar, penalizar o empregado que se recusar a agir conforme determinam os preceitos em matéria de saúde laboral, observada, claro, a imediatidade, proporcionalidade e não dupla penalização.

Isso, contudo, não resolve a questão da vacina. Não há indicativo legal que determine seja obrigado empregado a tomar a vacina. E não há, na CLT, artigo 482, indicação de penalidade em caso de recusa.

Nesta situação interessante, a fim de fundamentar o discurso, trazer a discussão o que está estampado no artigo 3º, “d”, da lei 13.979/20. Ali consta que para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da COVID19, poderá ser adotada vacinação ou outras medidas profiláticas, dispositivo este que, uma vez lido em conjunto com o plano nacional de imunização[2], pode resolver o problema.

É que em devendo o empregado observar as norma de higiene e saúde do trabalho, artigo 158, I, da CLT, c/c NR-1, p. 6.730/20 e, levando em conta o problema presente da pandemia da COVID19, situação esta em que uma das  opções legislativas, artigo 3º, “d” da lei 13.979/20, é a vacinação, com posterior adoção de plano nacional de vacinação (imunização), pode parecer certo que a recusa do empregado em tomar a vacina acarrete justa causa do empregado, artigo 482, “h”, da CLT, ato de indisciplina e de insubordinação.

Não é fácil, como se pode ver, enquadrar a questão. É por isso que cabe ao empregador, antes de aplicar a justa causa, averiguar se não há outra forma de evitar a despedida. Por exemplo realocar o empregado, deixá-lo laborando em casa, entre outras medidas substitutivas à punição. E isso se justifica pois que é perfeitamente possível que o trabalhador não queira, por questões de intimidade e consciência próprios dos direitos de personalidade, receber a vacina.

O que se apresenta, contudo, para mim mais adequado é a despedida sem justa causa, com a escusa, pelo empregador, de despedida discriminatória justamente em função da recusa pelo trabalhador de receber a vacina. Note-se que esta recusa é legítima e preserva direito de personalidade do trabalhador mas faz com que, uma vez despedido em razão disso, pelo interesse da preservação da saúde coletiva, não possa alegar tratar-se de despedida discriminatória pois que, como dito, esta preserva o interesse coletivo quanto à imunização.

De qualquer forma, independentemente da opção pelo tomador do trabalho (despedida por justa causa ou sem justa causa), caberá ao empregador, por força do artigo 7º XXII, da Cf/88[3], não desviar os olhos de que deve operar para a redução dos riscos inerentes ao trabalho, ou seja, manejar sua estrutura empresária de forma a proteger seus trabalhadores, o fazendo com incentivo ao distanciamento, higienização das mãos, uso de máscaras, palestras educativas quanto à importância da imunização, facilitação de acesso à vacina entre outros. São providências estas necessárias caso queira, com fundamentos conforme supra, rescindir pacto laboral do trabalhador que discorde.

É bom que se diga, sobre a vacina, que o Supremo Tribunal Federal (ARE 1267879) já decidiu que ninguém pode ser obrigado a ser vacinado, mas aquele que se recusar deve arcar com suas escolhas[4]. Isso, contudo, não quer dizer seja o caso de despedida por justa causa. Cabe aqui conciliar o interesse coletivo com a questão do trabalho como elemento de existência humana e subsistência. E a meu ver a melhor forma de fazê-lo, embora confesse não ser absurda a ideia de justa causa, é a despedida imotivada.

Registro que sobre o tema países europeus se posicionam na ideia de não ser possível exigir a vacinação junto aos empregados e que o rompimento dos pactos laborais pode acarretar ato discriminatório e despedida injusta, o que, em muitos países, converteria em indenização ou reintegração, conforme o caso.[5]

A difícil questão das mulheres com intenção reprodutiva

Dito isso, parece pertinente abordar outra questão: mulheres em idade reprodutiva poderiam negar-se a serem vacinadas alegando que não há estudos suficientes sobre os efeitos junto à fertilidade feminina[6]?

A questão não me parece simples. Aliás a do trabalhador em geral, como visto supra, também não é.

É sabido que, inicialmente, gestantes não devem tomar a vacina. Não há estudos sobre os efeitos nestas condições. Às crianças também ainda não é autorizada a vacinação com estas doses emergenciais disponíveis. Mas e as demais mulheres, aquelas que aleguem não querer serem vacinadas por receio de efeitos negativos sobre sua fertilidade. Poderão elas ser despedidas quer por justa causa que sem justa causa?

Aqui há uma questão ainda mais central.

É evidente que o bem maior, a vida (e também a saúde), deve ser preservada e, como direitos de personalidade, acabam por reduzir a incidência de algumas outras normas que se aplicariam ao tema. É interessante, entretanto, ponderar direitos à vida e à saúde com aquele da preservação da espécie e da saúde de quem dará a vida a quem vem depois. Ou seja, se não há estudos sobre o tema no que pertine à fertilidade, não há estudos quanto aos efeitos sobre o feto e sobre a futura criança.

Em se utilizando dos mesmos padrões lançados para os trabalhadores em geral, não estariam em risco a sequencia de vida humana na terra e a saúde das gerações futuras?

No meu ponto de vista as duas situações divergem (trabalhadores em geral e empregadas que alegam risco quanto à fertilidade). Isso porque a questão da vacinação, no caso das mulheres em idade reprodutiva, transcende ao “eu” e atinge a todos. Não é uma recusa individual por motivos de foro íntimo ou consciência mas sim de preservação da espécie e de prosseguimento dela com saúde. Destaco ser sabido que, embora a situação seja grave, a COVID tem um índice de letalidade de menos de 0,5%, o que não coloca, nem de perto, em risco o futuro da espécie humana.

Em outra visão, em não havendo segurança quanto aos efeitos da vacina sobre a fertilidade, é prudente, e isso pelo princípio da precaução, não se exija da mulher receber a vacina sob pena de, em se negando, perder o emprego. É salutar lembrar que a constituição brasileira de 1988 é um diploma socioambiental, o que faz perfeitamente possível se colha este princípio de direito ambiental para aplica-lo ao direito do trabalho. E não apenas quanto ao meio ambiente do trabalho, mas em razão dos efeitos de certa medida médica não comprovada pela ciência quanto aos seus efeitos futuros.

É por isso que nesta situação em particular sustento que não cabe, em para mim sequer é duvidoso ou discutível (como pode ser no caso dos empregados em geral) a justa causa. Caberá ao empregador remanejar a trabalhadora ou deixa-la em casa, sem prejuízo dos salários, não podendo aplicar sequer a despedida sem justa causa. O interesse, aqui, na preservação da espécie e das gerações futuras se sobrepõe ao direito coletivo à saúde, pois que se pode perfeitamente ou remanejar a trabalhadora ou deixa-la em casa, e à propriedade privada e liberdade de empresa (livre iniciativa), pois que estas últimas dependem de sua função socioambiental, artigo 5º, XXIII, da CF/88. Considera-se aqui que eventual acréscimo econômico ou mesmo limitação à ação de despedida do empregador encontram óbice, neste caso específico (despedida da empregada que alega risco quanto à sua fertilidade), no que estabelece o antes citado artigo da constituição.

Ainda nesse ponto é interessante conciliar a posição lançada com a referida decisão do STF pois que os motivos atinentes à recusa da trabalhadora em tomar a vacina não são de consciência ou foro íntimo, a saber do “eu”, mas sim dizem respeito à preservação da espécie e saúde e segurança das gerações futuras, bens este que transcendem o aspecto individual e tomam lugar, em parte, da proteção à saúde coletiva em razão de haver forma de se conciliar ambos.

É pertinente acrescentar, antes de concluir, que estudos preliminares atestam para o fato de que a vacina não interfere na fertilidade nem de homens e nem de mulheres e que poderia ser aplicada em gestantes. Contudo, até que se possa ter certeza, creio que não cabe correr certos riscos, em especial de insistir receber vacina a empregada em idade e intenção reprodutiva e que se recuse a ser imunizada em razão de riscos à sua fertilidade.

Concluo, pois, este suspiro da seguinte forma:

  1. É possível, conciliando a recente decisão do STF e normas antes citadas, a despedida, sem justa causa, de empregado que se recuse a tomar a vacina, desde que o empregador tome todas as precauções atinentes às normas de higiene e saúde do trabalho, complementando-as com palestras que refiram a importância da vacina, uso de máscara, higienização, distanciamento, facilitação do acesso e incentivo ao acesso à vacina entre outros, situação esta em que estará, em tese, protegido contra alegada despedida discriminatória;
  2. Não é possível a despedida da empregada em idade reprodutiva que se recuse a ser vacinada em razão de não haver estudos sobre os efeitos quanto à sua fertilidade. Isso porque a preservação da espécie e saúde das gerações futuras se sobrepõe ao interesse coletivo, propriedade privada e liberdade de empresa, caso em que o empregador deverá ou realocar a empregada ou deixa-la em casa, sem prejuízo dos salários até que haja segurança ou quanto ao ambiente ou quanto à vacina.

Agradeço as contribuições dos colegas do Grupo de Estudos Análise Normativa da Escola Judicial do TRT4.

[1] Desde o ano 2000 houve ao menos quatro epidemias no planeta, uma delas, em 2009, de alarde mundial. No que pertine às crises capitalistas é fácil, mesmo sem fontes, citar as de 1929, 1989, 1999 e 2008.

[2]https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2020/dezembro/16/plano_vacinacao_versao_eletronica-1.pdf – acesso 15 de março de 2021, às 19h39min.

[3] Art 7º, XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; (…).

[4] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1 – acesso 15 de março de 2021, às 20h18min.

[5] COVID-19 Vaccinations and Considerations for European Employers | Jones Day – JDSupra – acesso 17 de março de 2021, às 15h20min.

[6] N.Y. Restaurant Fires Waitress Who Wouldn’t Get Covid-19 Vaccine – The New York Times (nytimes.com) – acesso 17 de março de 2021, às 15h58min.

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