O estranho caso dos índices de correção dos créditos trabalhistas: Strawberry Torrents Forever…
Guilherme Feliciano & Rodrigo Trindade
Bons filmes e séries de suspense costumam ser construídos atando uma sucessão de acontecimentos inusitados, que vão se intensificando e construindo o denso clima de ansiedade, excitação e expectativa que arrebata o expectador. Mas todo bom roteirista sabe que há um limite: ainda que se espere ver ocorrências incomuns, o “carregar a mão” torna o enredo inverossímil e a graça termina. Assim tem sido, na Justiça do Trabalho, com o intrincado problema da atualização monetária. E, no sábado 27/6, qual inusitada reprise – porque já havíamos visto esse capítulo –, o último capítulo foi surrealmente desconcertante. E está servindo de base para uma sucessão fatos bastante singulares.
Para que o leitor compreenda, são incomuns medidas liminares expedidas em sábados, notadamente se dizem respeito a ações já antigas. Mais ainda incomuns, se contrariam entendimento coletivo anteriormente exarado, sobre o mesmo tema, pelo mesmo órgão. Se, contudo, todas essas improváveis circunstâncias se somarem e o resultado prático for a paralisação de milhares de processos em todo um ramo do Judiciário, com prejuízo imediato a incontáveis cidadãos em todo o território nacional – entre trabalhadores e empresários -, aí o quadro passa a desafiar a verossimilhança. Fosse um thriller, mudaríamos de canal. Mas não é. É a mais sólida e objetiva realidade. E as consequências dessa incrível cadeia causal já bate à nossa porta.
Entendamos melhor o contexto, principiando com uma breve sinopse dessa arrastada novela. Até o ano de 2015, a Justiça do Trabalho corrigia os créditos trabalhistas aplicando a Taxa Referencial (TR), nos termos do que dispunha a Lei 8.177/91, acrescida de 12% de juros ao ano. A partir de 2016, o TST passou a determinar o uso do IPCA-E, à vista de decisões anteriores do STF reconhecendo a inconstitucionalidade da correção pela TRD, como ainda em face do que o Supremo decidiu na Ação Cautelar 3764 (adotando justamente o IPCA-E). Sobreveio então a Lei 13.467/2017 (a dita “Reforma Trabalhista”), retomando textualmente o uso da TR. Mas, logo depois – em dezembro do mesmo ano de 2017 -, o próprio STF (2ª Turma) julgou improcedente a Reclamação 22.012, formulada pela Fenaban, ao argumento de que a decisão do TST ali atacada, ao determinar recálculos com base no IPCA-E (e não na TR), “está em consonância com a ratio decidendi da orientação jurisprudencial desta Suprema Corte” (restando vebncidos, à altura, os Ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes). Noutras palavras, o STF dizia ao país que a tese dominante no TST ajustava-se à interpretação perfilhada pelo STF em tantas outras decisões; e, por outro lado, a “novidade” trazida pela Reforma Trabalhista nascia viciada. Subsequentemente, corroborando essa percepção, o Governo Bolsonaro editou a MP 905/2019, (re)estabelecendo IPCA-E como o índice de correção para débitos trabalhistas, mas, dessa vez, acrescido de juros da poupança. Meses depois, porém, adveio a MP 955/2020, do mesmo governo, revogando a MP 905… E a redação da CLT, quanto à matéria, voltou a ser aquela da Lei 13.467/2017. O Brasil – e o Direito brasileiro – realmente não é para principiantes.
Agora, porém, sobreveio o “novo” capítulo final – ou, quem sabe, o primeiro capítulo de uma nova e longa narrativa –, inesperado e surpreendente, com a autodeclarada finalidade de conferir segurança jurídica às decisões da Justiça do Trabalho. Trouxe, desde logo, imensa perplexidade.
Com efeito, às vésperas do recesso do Supremo Tribunal Federal, quando grandes emoções já não eram esperadas, veio a lume, sob a lavra do Ministro Gilmar Mendes, decisão monocrática exarada em ação declaratória de constitucionalidade ajuizada no distante mês de setembro de 2018 – logo, há quase dois anos – determinou a suspensão de julgamentos de todos os processos em que se esteja discutindo a aplicação do índice de correção para os débitos trabalhistas (notadamente dois deles, que vêm se digladiando já há mais de quatro primaveras: o IPCA-E, mais generosa com os créditos a corrigir, e a TR, “zerada” em sucessivos meses nos últimos anos). Na prática, a ser seguida literalmente, sem esclarecimentos ou modulações, tal medida importará no sobrestamento de algo entre 70% e 90% de todas as ações trabalhistas, a depender da região. E, ainda mais gravemente, representará imenso entrave ao andamento de todas as execuções trabalhistas do Brasil.
A origem está em ADC n. 58, apresentada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (CONSIF), ao lado da qual já figuram diversas entidades patronais amigas da corte (p. ex., a Federação Nacional das Empresas de Rádio e Televisão, a Confederação Nacional dos Transportes, a Associação Brasileira do Agronegócio, a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino etc.). Para mais, além da suspensão do julgamento, foi requerido que TST e CSJT se abstivessem de alterar a Tabela de Atualização das Dívidas Trabalhistas, impondo-se a aplicação da TR.
É curiosa a contradição interna que se oculta nessa investida judicial, que colheu resultado dois dias antes de o Tribunal Superior do Trabalho pacificar a matéria (com votos já colhidos no sentido de afastar a TR, por inconstitucional – conforme decisões do próprio STF, como, e.g., na ADI 4.357 e no RE 870.947 -, e impor o IPCA-E). As instituições financeiras representadas jamais cogitaram aplicar a TR para recompor os créditos que possuem junto a seus clientes inadimplentes. Para afirmar que as próprias dívidas com seus ex-empregados deveriam se valer desse índice pífio, no entanto, constroem sofisticada estrutura argumentativa, na linha de que os referidos precedentes do STF dizem respeito à atualização dos créditos havidos perante a Fazenda Pública, inclusive para preservar o direito de propriedade dos seus credores; mas isto não necessariamente se estenderia aos credores trabalhistas (que, logo, não precisariam ter a “propriedade” assim tão protegida). Ora bem, ao se reconhecer que créditos alimentares trabalhistas, decorrentes de descumprimento de diretos sociais fundamentais, devem ser atualizados com índices menos favoráveis do que aqueles que corrigem débitos em contratos de financiamento, cai por terra, ao primeiro olhar equidistante, qualquer esforço de justificação. Precisamente, este é o problema: tal discriminação não é justa, à luz de qualquer imperativo categórico (Kant), da ideia de “maximum minimorum” (Rawls), do mais comezinho senso de proporcionalidade (Alexy) ou, enfim, sob o prisma de qualquer conceito contemporâneo de justiça e isonomia, por mais liberal que seja.
Não há maiores dúvidas de que a TR é um índice absolutamente inútil para recompor valores de dívidas. Segue agora, entre os credores trabalhistas, tão viva como cadáveres insepultos. Se um locatário propusesse ao seu locador que os valores dos alugueres fossem corrigidos pela TR, seria provavelmente ridicularizado, tal a irracionalidade da proposta. Para trabalhadores, porém, esse é o “novo” (velho) normal.
Para ser ainda mais claro: a par de todos os preditos ingredientes de enredo inverossímil, a questão de fundo diz respeito a definir se, afinal, vamos fazer do calote um bom negócio ao devedor, especialmente num ambiente repleto de recursos judiciários e sobejante em criatividades, para um lado e outro. Nessa novela, porém, ao fim e ao cabo, negar a correção monetária com mínima recomposição real é premiar o vilão do enredo, aquele que faz da sonegação de obrigações sua injusta vantagem concorrencial. Perdem os trabalhadores, como perdem também os bons empregadores, que quitam a tempo e modo suas obrigações trabalhistas. Estimula-se a mora e a inadimplência, convolando a Justiça do Trabalho em uma máquina de rolar dívidas. E, por fim, tratando-se de créditos essencialmente alimentares – salários, verbas rescisórias e afins –, destinados à subsistência de trabalhadores desempregados e das respectivas famílias (até que sobrevenha uma nova fonte de renda), a adoção da TR coroa a delinquência patronal e promoção do dumping social. Sob tais premissas, a “dúvida” suprema – e a própria decisão liminar – é algo de difícil explicação.
Há, porém, algo ainda mais grave neste nosso presente, em que a população enfrenta uma pandemia, o índice de desemprego se incrementa violentamente e o país amarga um estado de calamidade e de emergência de saúde pública que se projeta até pelo menos 31/12/2020. Como dizíamos no início, a vingar a literalidade da medida liminar, os efeitos serão altamente danosos justamente para as populações mais necessitadas. Desde segunda-feira, alvarás judiciais que liberariam dinheiros a reclamantes vencedores em suas ações trabalhistas podem se ver sustados, porque, tratando-se de execução provisória, segue no tribunal a discussão do índice de atualização. Da mesma maneira, empresas que necessitam de uma decisão colegiada para seus recursos, em que discutem as mais diversas matérias de fato e de direito, terão de aguardar uma definição que poderá levar meses, apenas porque uma dessas tantas matérias é precisamente a discussão do índice de atualização monetária. E sequer há a alternativa do julgamento parcial de mérito, introduzido pelo CPC de 2015, porque o processo judicial eletrônico adotado no âmbito da Justiça do Trabalho (PJe-JT) ainda não permite esse fluxo no segundo grau; noutras palavras, não é possível sobrestar os recursos apenas quando ao índice de correção: ou se suspende tudo, ou não se suspende nada.
A decisão liminar alcança, portanto, ações iniciadas, execuções em andamento e recursos em processamento, com o risco de promover – como já se lê aqui e acolá – um inadvertido lockdown na Justiça do Trabalho, comprometendo a sua própria capacidade de injetar capital em um mercado já apático, à vista da resiliente pandemia da covid-19.
Falando outrora de um cenário “nada real” (“nothing real”) – da infância em Liverpool –, em 1967, os imortais Beatles descreveram os seus famosos campos de morango (“strawberry fields”). No cenário surreal a que agora os credores trabalhistas serão submetidos, as incertezas e a sensação de que “está tudo errado” (“it’s all wrong”) serão quiçá as mesmas. O que muda é o entorno. Já não são plácidos campos, mas violentas torrentes. E haverá muito com que se preocupar.
Publicação original na Folha de São Paulo:
Guilherme Feliciano, juiz do Trabalho, é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho no biênio 2017-2019.
Rodrigo Trindade, juiz do Trabalho, presidiu a Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul) no biênio 2017-2019.
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