A MP nº 927 pode instalar o caos no País
*Guilherme Feliciano, juiz do Trabalho, é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho no biênio 2017-2019
*Rodrigo Trindade, juiz do Trabalho, presidiu a Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul) no biênio 2017-2019
Em todos os contextos de crise, há dois erros cruciais que comprometem a eficiência das medidas de contenção: o subestimar e o exceder-se. Entre a apatia desdenhosa e os ímpetos irracionais, vale mais uma vez a máxima romana: “virtus in medio”. No mundo do trabalho, os desafios trazidos pela pandemia do coronavírus não fogem a essa velha regra. As “alternativas” que circulam entre nós, como as reduções bruscas de salário – demagógicos cortes de 50% nos salários dos setores público e privado (inclusive para os profissionais da saúde?) – ou a introdução de novos modelos de contratação precária, não servirão como antídoto; antes, aprofundarão as tensões, minando fortemente, a médio e longo prazos, o já combalido mercado consumidor interno. E, para mais, tropeçam em guaridas que não podem ser removidas, se pretendemos seguir como Estado Democrático de Direito: as garantias constitucionais. Assim, p. ex., não se pode simplesmente recorrer ao art. 503 da CLT, como afoitamente se ouve, para promover a redução geral de salários em 25%, ao inteiro talante da empresa; isto porque o texto legal, de 1943, já não tem aplicação à luz da Constituição de 1988: desde a sua promulgação, assegura-se aos empregados a irredutibilidade de salários (art. 7º, VI), “salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”. Noutras palavras, somente pela negociação coletiva – e não por um passe de mágica – os salários dos trabalhadores de uma empresa ou de uma categoria profissional poderão ser reduzidos; e, nesse caso, com devidas contrapartidas (como, p. ex., redução de jornada e garantia de emprego).
Algumas multinacionais anteciparam-se às ações oficiais e concederam férias coletivas aos seus trabalhadores. Outras, ao revés, insistindo em manter os riscos sanitários a que estão expostos seus empregados (notadamente quando já identificados casos de infecção entre os colaboradores), precipitam movimentos coletivos de resistência e paralisação. Interessa lembrar que, nos termos do art. 13 da Convenção n. 155 da OIT – que foi ratificada pelo Brasil e têm força legal (se não supralegal) no sistema jurídico nacional –, “deverá ser protegido de consequências injustificadas todo trabalhador que julgar necessário interromper uma situação de trabalho por considerar, por motivos razoáveis, que ela envolve um perigo grave e iminente para sua vida ou sua saúde”. Na mesma direção, a Constituição do Estado de São Paulo prevê, em seu art. 229, §2º, que, “em condições de risco grave ou iminente no local de trabalho, será lícito ao empregado interromper suas atividades, sem prejuízo de quaisquer direitos, até a eliminação do risco”. Eis porque, afinal, não haverá equacionamento razoável no campo trabalhista sem o necessário e refletido diálogo social entre patrões e empregados.
No campo legislativo, impendia editar normativos de urgência, seguindo aquela primeira receita: sem leniência, nem excessos. Do outro lado do Atlântico, países como Alemanha, França, Itália, Espanha, Portugal e Dinamarca criaram regulações trabalhistas engenhosas para a crise, distribuindo recursos, vedando dispensas e permitindo faltas remuneradas para quem precisa ficar em casa cuidando de filhos e enfermos. Entre nós, algumas alternativas poderiam ser buscadas. Citem-se, p. ex., as facilitações legais para a concessão e o pagamento de férias (inclusive coletivas), a simplificação do regime de teletrabalho (sem perda de direitos ou excessos de jornada), o custeio de afastamentos pela Previdência – inclusive para requalificação (lay-off) – e a dilação de prazos para recolhimentos de FGTS. No âmbito dos tribunais do trabalho, poder-se-iam organizar “fast tracks” (forças-tarefa para a rápida apreciação de conflitos trabalhistas derivados da pandemia). No entanto, o Poder Executivo Federal decidiu caminhar na direção diametralmente oposta: com a MP 927/2020, consumou a opção de sacrificar os mais pobres, permitindo a suspensão unilateral dos contratos de trabalho por quatro meses, com a “contrapartida” de inúteis cursos “on line” e a negociação individual de uma infausta “ajuda compensatória mensal”, sem qualquer intervenção do sindicato (o que padece de curial inconstitucionalidade). Além disso, a MP cria a “presunção” de que a contaminação pelo coronavírus dá-se sempre fora da empresa (art. 29); e, para mais, estabelece uma inexplicável moratória de 180 dias para toda e qualquer ilegalidade trabalhista (exceto as do art. 31, I a IV), durante a qual os auditores fiscais do trabalho atuarão apenas de “maneira orientadora”. Falta sensibilidade social à MP, que aproveita o desastroso ensejo para erodir direitos sociais.
Stephen Hawking costumava dizer que a inteligência é a habilidade de se adaptar à mudança. Eis o tipo de inteligência que, neste momento, espera-se de homens públicos e cidadãos em geral. Não a “inteligência” dos oportunismos.
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