Saque anual do FGTS: parece bom, mas a carga pode ficar pesada para quem mais precisa
Antes de imediatismos consumistas e agrados financistas, é preciso compreender a utilidade social do FGTS: casa, saneamento básico e renda de sobrevivência no desemprego
Rodrigo Trindade
Anunciada e publicada ontem, dia 24 de julho, a Medida Provisória 889 cria amplas possibilidades de empregados terem acesso antecipado aos valores depositados na conta vinculada do FGTS.
Os pontos mais importantes são esses:
- Entre setembro e 31 de março de 2019, será possível sacar até R$ 500 de cada conta vinculada. Ou seja, se o empregado tiver dois empregadores, de cada um poderá obter esse valor, caso haja depósitos.
- Cria-se o saque-aniversário: a partir do ano que vem, abre-se a possibilidade da retirada ocorrer em uma vez ao ano, no mês de aniversário do trabalhador. Os limites variam de 5% a 50% sobre o saldo depositado, mas os percentuais máximos podem ser modificados pelo Executivo.
- Havendo opção pela extração anual, o empregado perde o direito de obter saque dos valores depósitos por ocasião da dispensa, o saque-rescisão.
- Não há alteração na composição da multa de 40%: segue a base de cálculo da integralidade dos depósitos, independentemente de ter ocorrido saque-aniversário.
- Os direitos de saque-aniversário poderão ser objeto de alienação ou cessão fiduciária, com possibilidade de bloqueio.
- Considera-se não quitado o FGTS pago diretamente ao trabalhador, vedada a conversão em indenização compensatória.
- Também há autorização de saque individual na conta do PIS-Pasep, a partir de 19/8/2019.
Nossa análise:
A justificativa apresentada pelo Poder Executivo para a MP 889 é de que as contas do FGTS rendem pouco e há necessidade de injeção de recursos para aquecer o mercado de consumo. Reconhece-se a importância de quitação de dívidas dos empregados, principalmente com instituições financeiras e para isso os valores depositados no Fundo de Garantia podem servir.
Sem dúvidas, o FGTS rende pouco: 3% ao ano, somado à variação da TR. Pouquíssimo, comparado às taxas de juros praticadas pelo mercado financeiro brasileiro. Mas há um motivo para ser assim. Os recursos do Fundo servem essencialmente para o cumprimento de importantes demandas nacionais, o financiamento habitacional e a execução de serviços de saneamento básico. Caso o rendimento fosse mais alto, simplesmente estaria inviabilizada a destinação para essas obras sociais.
Segundo dados do Minha Casa Minha Vida, nos últimos 10 anos, R$ 235 bilhões oriundos do FGTS foram destinados para construir quase 3 milhões de moradias, dentro de universo com déficit habitacional de 6 a 10 milhões de unidades. Para obras de esgoto e água tratada foram cerca de R$ 70 bilhões em 20 anos.
O cobertor é curto, liberando os valores para uso individual, certamente faltará para, literalmente, água limpa nas torneiras da população mais pobre. Mas o encurtamento também afeta a construção civil e seu necessário financiamento. Uma das atividades econômicas que mais contrata e gera renda em extensa cadeia produtiva fica desabastecida com a MP 889.
O aquecimento do consumo também é tentador, especialmente na atual quadra nacional de estagnação da produção e do poder de compra. No entanto, é preciso averiguar o montante de recursos, quem terá acesso e se, fatalmente, não será destinado ao reinvestimento meramente financeiro. Das atuais contas ativas do FGTS, apenas 1% delas tem 40% do total dos depósitos e 85% contam com menos de um salário mínimo apontando no estrato. Ao final de 2016, já houve liberação dos valores depositados nas contas inativas e não se notou qualquer arrefecimento na crise econômica. Por fim, quitação de dívidas atrasadas de empregados com instituições financeiras não parece exatamente ser meio de reaquecer a atividade produtiva.
Também é preciso atentar que não se considera quitado o FGTS pago diretamente ao trabalhador, como em acordos trabalhistas. E isso para não prejudicar a instituição financeira que “comprou” o crédito e ficaria com acesso dificultado à execução da dívida.
Mas há situação muito prática da utilidade dos recursos do FGTS que está passando aparentemente desapercebida. Talvez porque não se compreenda por que ele surgiu e para o quê.
O regime do Fundo de Garantia apareceu nos anos 60 do século passado para substituir o sistema da estabilidade. Até então, empregados eram “estáveis” e somente poderiam ser despedidos com motivo bem justificado. Aos poucos, o Fundo foi corroendo e extinguindo a estabilidade. Mas não substituiu a função política e social de atuar no combate à desocupação involuntária e provimento de recursos financeiros durante o período em que se procura novo trabalho.
Ante a altíssima rotatividade de emprego no país (despede-se muito) e as limitações temporais e de valores do seguro desemprego, são os recursos obtidos do saque do FGTS que acabam servindo para garantir a sobrevivência, até que se encontre nova ocupação. Em poucas palavras, come-se o FGTS.
O caráter alimentar e emergencial do uso do fundo é tão evidente que apenas pode haver acesso aos valores em situações de compatível urgência, como desastres naturais e doenças graves.
Com as novas regras propostas, o empregado que se utilizar do saque-anual (apenas no percentual possível de sua faixa de depósito) simplesmente fica desguarnecido dessa reserva quando, fatalmente, for despedido. Por exemplo, se sacar e consumir os valores em dezembro, e for despedido em fevereiro, simplesmente “ficará na mão” por dois anos, pois estará cancelado o saque rescisão. Somando-se a possibilidade de previamente “vender” os valores para instituições financeiras, e no atual momento de desemprego estabilizado em taxas muito altas, o quadro pode ser tornar desesperador para a sobrevivência das famílias.
As possibilidades de efetivo aquecimento na economia são muito baixas e dificilmente compensarão as perdas com construção civil. Os interessados em investir/pagar dívidas e, consequentemente, verem-se futuramente impossibilitados de utilizar os recursos durante o desemprego, poderão solicitar migração à Caixa, ainda em outubro desse ano. O mercado financeiro agradece, mas, atenção: a carga poderá ser bem pesada no futuro dos mais pobres.
Vejo excesso de tutela na matéria. Quem quiser e necessitar é mais uma opção (ninguém é obrigado a fazer o saque antecipado). Há o seguro desemprego pra quem for demitido sem justa causa. E a construção civil tem que aprender a andar com as próprias pernas como os demais ramos da economia.
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