A HUNGRIA NÃO É AQUI. MAS PODIA SER
Milhares de trabalhadores da Hungria protestaram e queimaram carros contra alteração em legislação trabalhista local apelidada de “lei dos escravos”. O que falta contar é que a proposta de escravidão húngara traz condições bem melhores que as brasileiras.
Rodrigo Trindade
Semana passada, por quatro dias seguidos, milhares de húngaros marcharam pelas ruas de Budapeste, protestando contra nova lei trabalhista apelidada de “lei dos escravos”. As insurgências também se dirigiram contra alterações legislativas que tendem a esvaziar o Judiciário local.
Nas modificações pretendidas, empregadores poderão exigir até 400 horas extras por ano de seus funcionários. No Brasil, mesmo antes da Reforma Trabalhista, as condições já eram bem piores que no país do Leste Europeu. Por aqui, pode-se requerer que empregados executem até duas horas extras por dia. Assim, se cumprirem a imposição em 20 dias por mês (e muitos cumprem), descontado um mês de férias, haverá 440 horas extras no ano. Isso sem contar trabalhos em dias de repouso.
Mas em terra brasilis, a situação real é ainda pior.
Não temos qualquer previsão legal, séria e efetiva, que impeça a exigência de mais que duas horas extras diárias. Na prática, sem maiores justificativas ou comprovação de excepcionalidade, resolve-se no dinheiro: paga-se o adicional e segue-se com o excesso de serviço.
E isso tem sido ruim para a saúde – da economia e das pessoas.
Estudo recente revela que nosso país é o que tem maior acúmulo de horas extras no planeta: 76% dos brasileiros trabalham nove horas ou mais, entre uma vez por semana e todos os dias. A mesma pesquisa mostra que apenas US$ 294 bilhões são gerados por horas extras no Brasil, em comparação com US$ 1,9 trilhão nos EUA, US$ 679 bilhões na Alemanha e US$ 398 bilhões na França. Nesses países, as percentagens de trabalhadores que fazem horas extras estão, respectivamente, em 44%, 69% e 68%. Os números esclarecem que no Brasil se trabalha muito e se ganha pouco com horas extras. Há dois motivos: valor baixo atribuído ao excesso de serviço e a prática de burla em registro e pagamento.
Toda a “economia” gerada com a farra das horas extras brasileiras alimenta dois grandes dramas nacionais.
O excesso de serviço freia a empregabilidade. Como a jornada constitucional é de oito horas, fazer quatro funcionários trabalharem duas horas extras diárias bloqueia a contratação do nono colega. Fica muito mais barato ampliar jornadas, às vezes à exaustão, que abrir vaga.
Mas a maior destruição está em mortes, acidentes e adoecimentos. As trocas de turno e jornadas excessivas de trabalho estão entre as principais causas de acidentes e lesões. Em levantamento recente, o perigo de acidentes cresce 34,4% no horário noturno. No período entre as 00h00 e às 06h00, há 46% mais risco de que o trabalhador cometa erros e que isso leve a infortúnios diversos. À noite, o perigo cresce à partir da 9ª hora de trabalho, dobra à partir 12ª hora e triplica à partir da 14ª.
O mais triste é que isso tudo tende a piorar. Com a nova lei trabalhista brasileira, as jornadas de trabalho dirigem-se para ser ainda maiores. Para isso serve a exclusão do tempo de deslocamento ao trabalho como jornada, flexibilização de gestantes em locais insalubres, permissão desregrada de trabalho intermitente, indenização de intervalos e facilitação de jornadas de 12 horas.
A lei húngara passou a baliza de 250 para 400 horas extras anuais. No Brasil, sob altos custos, vamos testando os limites. Até onde der.
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