Terceirização no serviço público: risco é reabrir caixa de Pandora de interesses pessoais
Terceirização no serviço público: risco é reabrir caixa de Pandora de interesses pessoais
Guilherme Guimarães Feliciano & Rodrigo Trindade
Como pretexto de dinamizar o serviço público federal, a Presidência da República publicou, em 21/9, decreto de regulamentação para a “execução indireta, mediante contratação de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União” (decreto 9.507/2018). Apesar da exuberância do nome, serve essencialmente para o escancaramento das mais usuais práticas de terceirização, sem as peias que existiam no decreto anterior.
A ordem constitucional inaugurada em 1988 firmou-se a partir da vontade de extinguir práticas clientelistas, nepotistas e corruptas. A impessoalidade administrativa foi alçada à condição de princípio constitucional. Reconheceu-se a necessidade de extirpar velhas e conhecidas práticas de ocupação dos aparelhos estatais com “amigos do rei”.
Nesses anos, foram grandes os esforços para a efetivação dos valores da ética e da eficiência no serviço público. A luta pela edificação do acesso justo ampliou-se no esforço para reduzir cargos comissionados e convencer que funções de confiança devem ser supridas só por trabalhadores de carreira do próprio órgão.
Nesse contexto, o concurso público tomou-se o mais importante instrumento para cumprir a promessa de impedir a apropriação privada da máquina pública. Por ele, só se tem acesso ao trabalho remunerado pelo Estado após seleção baseada em provas e títulos. Objetividade, impessoalidade, meritocracia.
O decreto 9.507 cria margens para que concursos públicos sejam paulatinamente “substituídos” por contratos administrativos com empresas terceirizadas, abrindo perigosa caixa de Pandora: a dos interesses pessoais dos que momentaneamente ocupam cargos de poder.
Na esteira da reforma trabalhista e de julgamento recente pelo STF, abandona-se o balizamento limitativo da terceirização a serviços assessórios das entidades estatais. Em inusitada marcha a ré, o texto permite inferir autorização para terceirizar de forma indiscriminada, inclusive em atividades essenciais e genuínos serviços públicos, ainda que a única finalidade seja o barateamento da mão de obra.
Recentemente, juízes e juízas do Trabalho de todo o país reconheceram em plenária que as recentes alterações de leis trabalhistas, no que toca à terceirização, não se aplicam à administração pública direta, em razão do disposto na Constituição.
Mesmo a recente decisão do STF no âmbito da ADPF n. 324, ao reputar lícita a terceirização das chamadas “atividades-fim” certamente não sufragar o descarte do conjunto de princípios constitucionais que regem a administração pública; tampouco poderá ser pretexto para a fraude, para a precarização ou para a quebra da isonomia constitucional, notadamente no marco do serviço público federal.
Apenas agentes públicos permanentes, experientes e comprometidos com a continuidade do serviço, submetidos a certames públicos, podem garantir a qualidade tão exigida pelos cidadãos.
Não por outra razão, o repasse de atribuições estatais para empresas privadas é ordinariamente associado à ineficiência, à corrupção e ao distanciamento da população.
No mito de Pandora, a curiosidade motivou a liberação dos males até então contidos no artefato de Zeus. Na Pandora brasileira, as estatísticas já revelam à saciedade o que se pode esperar da terceirização irrestrita. A questão, portanto, já não é de curiosidade, mas de moralidade. Moralidade administrativa.
Guilherme Guimarães Feliciano é Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho(Anamatra)
Rodrigo Trindade é Professor e juiz do Trabalho na 4ª Região (Rio Grande do Sul)
Publicado em 02/11/2018, no jornal Folha de São Paulo, edições impressa e eletrônica.