O voto: liberdade que a relação de emprego não verga
Os autores, Guilherme Feliciano e Rodrigo Trindade, juízes do trabalho, defendem a necessidade de assegurar ambiente laboral saudável, combatendo admoestações e chantagens de empresários sobre funcionários. Também pontuam que a Justiça do Trabalho ocupa espaço importante no sistema democrático, garantindo lisura eleitoral, liberdade de consciência e igualdade de condições. Publicado no jornal Correio Braziliense, edições impressa e eletrônica, de 24.10.2018.
O voto: liberdade que a relação de emprego não verga
Guilherme Feliciano e Rodrigo Trindade
Noticiários das últimas semanas fizeram emergir uma curiosa e delicada questão jurídica, que tanto diz com o mundo do trabalho quanto com a “festa da democracia”, como se convencionou designar as eleições nacionais: empregadores podem “orientar” funcionários sobre como exercer o direito de sufrágio? A resposta há de ser pronta e peremptória: não.
Como todo cidadão, o sujeito empresário tem liberdade para exercer com plenitude seus direitos políticos, para exprimir suas ideias e, é claro, para administrar sua empresa. Em matéria eleitoral, porém, há limites a respeitar. Assim, por exemplo, a legislação brasileira considera criminosa a “venda de votos” e também o “voto de cabresto”, situações ordinárias na primeira metade do século 20 e ainda hoje renitentes em nossa realidade. Assim, não são lícitas as práticas em que o eleitor “troca” o voto por benefício ou vantagem de qualquer natureza, proporcionado ou oferecido pelo candidato ou por quaisquer apoiadores, como também não é lícita a cooptação de eleitores sob ameaça explícita ou velada, forçando-o a negociar o voto para prevenir algum prejuízo pessoal.
Com efeito, de acordo com a Lei nº 9.504/97, o candidato que doar, oferecer, prometer ou entregar ao eleitor algum bem para obter o voto — inclusive uma vaga de emprego ou função pública –, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, está sujeito a pena de multa, cassação e pode torna-se inelegível por oito anos. Da mesma maneira, reza o art. 301 da Lei nº 4.737/65 (Código Eleitoral) que é crime usar de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar ou não votar em determinado candidato ou partido, ainda que os fins visados não sejam conseguidos, cominando-se pena de reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a 15 dias-multa. Frequentemente tais práticas têm lugar no próprio ambiente de trabalho, o que deve ser repelido e denunciado.
É que a relação de emprego guarda no chamado poder hierárquico patronal uma das suas mais importantes caracterizações, vulnerabilizando o trabalhador em diversas circunstâncias. Na organização do seu empreendimento, o empregador pode modular o trabalho contratado, como pode fiscalizá-lo e, até mesmo, punir o seu empregado. Em contrapartida, surge para o empregado a obrigação de aceitar as ordens legais de serviço, tendo o trabalho fiscalizado e submetido às regras internas. O trabalhador submete-se ao que manda o patrão em decorrência da própria relação de emprego, porque se vê inserido em uma relação econômica assimétrica que vulnerabiliza a parte economicamente mais fraca.
No entanto, há restrições às prerrogativas do empregador, freando a tendência de a subalternidade econômica espraiar-se para o domínio da vida extralaboral. A fronteira do cabível assenta-se funcionalmente no estrito âmbito da relação de emprego e materialmente nos limites do exercício razoável dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais por parte dos empregados. Assim, não cabe ao patrão imiscuir-se nos elementos de vida do trabalhador que não afetam a relação de emprego, especialmente em aspectos personalíssimos, como questões religiosas, filosóficas, familiares e políticas.
É certo que a utilização da estrutura empresarial para obtenção de compromissos eleitorais não possui relação funcional com a relação de emprego. Ao contrário, agride o principal direito político do cidadão, que é o de eleger livre e secretamente os representantes junto ao poder público. Entenda-se bem essa agressão: quando o patrão convida seus empregados para tratar de política, em horário de trabalho, mesmo que sem a declarada intenção de obrigá-los a perfilhar determinada orientação, não o faz como faria um seu familiar, amigo ou irmão de fé, mas na qualidade de superior hierárquico, provedor de salário e de sobrevivência.
Com tanta diferença de potência, não há condições para estabelecer um debate igualitário, nem tampouco para alternativas de fuga discursiva ou resistência ideológica: ainda que o empregador genuinamente não pretenda “cabrestear” ou “cabalar”, o ambiente de tendencial dominação e hostilidade está bem-acabado para a imposição de uma única visão de mundo: a do empregador, apoiada na subordinação e na assimetria econômica. Da mesma forma, aliás, há limites para a atuação de sindicatos no convencimento político dos trabalhadores. Espaços empresariais fornecidos para comunicação das agremiações com seus representados não podem servir para a propaganda política de candidatos ou de programas partidários. Os sindicados podem, sim, externar as preferências políticas, mas em seus próprios espaços sociais, não nos franqueados pelas empresas para o diálogo sindical.
Não há democracia sem liberdade de escolha. Não há democracia sem freios e contrapesos. Não há democracia sem proteção de minorias e grupos vulneráveis. Parafraseando João Paulo II, se não quiser pôr a perder tudo o que defende e estimula, a democracia por si não se basta: ela precisa ter virtudes.
GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO
Juiz do Trabalho do TRT da 15ª Região, é presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
RODRIGO TRINDADE
Juiz do Trabalho do TRT da 4ª Região, é ex-presidente da AMATRA-RS e membro da Comissão Legislativa da Anamatra