Duas novas frentes do trabalho escravo legalizado
DUAS NOVAS FRENTES DO TRABALHO ESCRAVO LEGALIZADO
Rodrigo Trindade
Um decreto e um projeto de lei.
No início da semana, a Presidência da República promulgou o Dec. 9.450/2018, que institui a Política Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional. Com objetivo de ressocialização de presos e egressos do sistema prisional, cria condições para que empresas contratadas pela Administração utilizem da mão de obra dessas pessoas.
Em paralelo, segue ligeiro Projeto de Lei 580/2015 que permite ampla utilização de trabalho compulsório de presos, com direcionamento de renda unicamente para custeio das casas prisionais. Pode ser coincidência tratarem de temas complementares. Mas pode não ser.
Há gigantesco problema no Decreto 9.450/2018, e que é compartilhado pelo PL. Ao “se esquecer” de indicarem as modalidades contratuais de trabalho de apenados e egressos, deixam portas escancaradas para contratações altamente precarizadas e injustas para competitividade empresarial. Nem esclarecem que o trabalho deve ser efetivado na modalidade de relação de emprego, nem garantem igualdade de salários com trabalhadores livres. No limbo jurídico, não se há de esperar melhores condições de trabalho, de fair play e, muito menos, de garantias remuneratórias.
Caso não haja os devidos esclarecimentos, estaremos na gênese de nova e explosiva classe de trabalhadores, que agregam marginalização histórica com redução de direitos trabalhistas básicos. Enfim, institucionaliza-se novo quadro de precarização do trabalho aos libertos, que passam a competir em desvantagem com braços que podem custar bem menos ao patrão. Desde 13 de maio 1888, é o mais próximo da escravidão legalizada que já tivemos.
Trabalho prisional. Como funciona hoje?
O trabalho prisional segue orientações retiradas do art. 59 do Código Penal e natureza do delito. Assim se divide:
- O apenado do regime fechado fica recluso no estabelecimento prisional, pode realizar trabalho em conformidade com suas aptidões, compatível com a execução da pena (art. 34, § 2º do CP) e durante período diurno (art. 34, § 1º do CP). Nesse regime, é admissível trabalho externo em serviços ou obras públicas (art. 34, § 3º do CP).
- No regime semiaberto, a execução de pena ocorre em colônia agrícola, industrial ou similar (art. 33, § 1º, b, do CP) e sujeita-se a trabalho em período diurno (art. 35, § 1º, do CP). Também é possível labor extramuros, a partir do cumprimento de 1/6 da pena (art. 37 da LEP) e não se limita a serviços direcionados ao Estado.
- Apenados do regime aberto têm pena executada em casa de albergado ou similar (art. 33, § 1º, c, do CP) e deve trabalhar, sem vigilância, fora do estabelecimento, durante o dia e recolhendo-se à noite e nas folgas (art. 36, § 1º, do CP). Não há limitações expressas de atividades e tomadores do trabalho.
Em resumo, utiliza-se de quadro produzido por Laura Machado de Oliveira, na obra O Direito do Trabalho Penitenciário, a mais completa do país sobre o tema:
Vê-se que o trabalho de apenados pode ocorrer dentro ou fora do estabelecimento prisional e inserido em todos os regimes prisionais. Quanto ao egresso do sistema prisional, não há qualquer previsão legal de diferenças de tratamento, vez que já não conta com restrições de liberdade, e formalmente, zerou sua dívida com a sociedade.
Necessidade de ressocialização pelo trabalho. Laborterapia
Conceitualmente, trabalho prisional é a atividade laboral cogente ou voluntária, remunerada, realizada interna ou externamente por preso, com finalidade educativa e produtiva, no âmbito da reclusão. Conforme orientação da Lei de Execução Penal, o trabalho do apenado é misto de dever (art. 39, V) e direito (art. 41, II) e sempre será remunerado (art. 29, caput e § 1º).
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, XLVII, c, genericamente veda pena de trabalhos forçados, mas nada refere acerca de inserção de trabalho do apenado durante o período prisional. Por efeito, a Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) estabelece regulação para trabalho realizado no âmbito do regime prisional. A partir da concepção de laborterapia, reconhece-se importância de atividades produtivas, como forma de efetiva execução da pena.
Em âmbito da União, o Regulamento Penitenciário Federal, aprovado pelo Decreto n. 6.049, de 27 de fevereiro de 2007, trata do trabalho prisional, inclusive no Regime Disciplinar Diferenciado. Em seu art. 98, § 2º, mantém a orientação da LEP de que todo trabalho de presos terá caráter remuneratório – desenvolvido na própria cela ou local adequado.
Delimitação da natureza jurídica do trabalho e direitos assegurados
O trabalho prisional segue naturezas distintas, conforme âmbito de atuação e beneficiários. Ainda que subordinado e produtivo, a atividade de manutenção do estabelecimento, realizada intramuros, é compulsória, disciplinar e mantém natureza administrativa. O trabalho externo, todavia, especialmente quando direcionado à iniciativa privada, tem natureza diversa, demandando consentimento. Do mesmo modo, o trabalho dentro da casa prisional, mas fora do âmbito de manutenção.
O serviço para entidade privada pode ocorrer tanto no âmbito interno, como externo e sempre depende de consentimento pessoal. Na hipótese de labor extramuros, é mais explícita a situação de concorrência pela vaga entre apenado e liberto, pois podem realizar as mesmas atividades. Resta evidenciada nessas situações a formação de relação de emprego entre apenado e particular tomador do trabalho.
É bem verdade que a LEP (art. 28, § 2º) refere que o trabalho do preso não está sujeito ao regime da CLT. Trata-se, todavia, de orientação genérica e direcionada para o trabalho interno de manutenção do estabelecimento, ante a evidente característica disciplinar e impossibilidade de formação de contrato, pela ausência de liberdade. Nesse exato sentido é a explicação dada pela mensagem n. 242 de 1983, itens 56 e 57, motivadora da LEP[1].
Normas gerais do Decreto 9.450/2018
Como de costume, o preâmbulo é lindo nas intenções. Declara que busca a “ampliação e qualificação da oferta de vagas de trabalho, ao empreendedorismo e à formação profissional das pessoas presas e egressas do sistema prisional.” Perfeito.
O normativo não disciplina apenas trabalho prisional – já previsto na Lei de Execuções Penais – mas se aplica em conjunto a presos provisórios, pessoas privadas de liberdade em cumprimento de pena no regime fechado, semiaberto e aberto e aos egressos do sistema prisional. Ou seja, dirige-se a todos os tipos de presos, mas também àqueles que já cumpriram suas penas e seguem com notórias dificuldades de realocação no mercado de trabalho legalizado.
Estabelece que os órgãos da Administração Federal devem utilizar mão de obra formada por apenados ou egressos do sistema prisional em contratos de serviços com valor anual de R$ 330 milhões. O requisito já era genericamente previsto na lei geral de licitações (art. 40, § 5º da Lei n. 8.666/1993) e agora ganha regulamentação. Na prática, deve se dirigir principalmente para grandes obras de engenharia.
O Decreto estabelece proporções para uso dessa força de trabalho. Dependendo do número de funcionários necessários, deve haver emprego de apenados de todos os regimes e egressos, variando de 3% a 6% do total da demanda de trabalhadores. Mas pode empregar máximo de 10% de presos do regime fechado.
Por fim, delimitam-se responsabilidades de fiscalização compartilhadas entre o Ministério dos Direitos Humanos, por meio da Secretaria Nacional de Cidadania, e o Ministério da Segurança Pública, através do Departamento Penitenciário Nacional.
Ministério do Trabalho? Superintendência Regional do Trabalho? Ministério Público do Trabalho? Justiça do Trabalho? Apesar de tratar de trabalho humano, remunerado e produtivo, nenhum desses órgãos são sequer citados – nem no Decreto, nem no Projeto de Lei. Mais um ponto conceitual comum e que parece indicar o vetor de despreocupação com o mais marcante delimitador do trabalho humano – a própria humanidade de quem trabalha.
Horizonte próximo de utilização indevida de mão de obra de apenados e egressos
Já há identificação de situações de abuso empresarial na utilização de mão de obra de apenados. Recentemente, no Paraná, o Ministério Público do Trabalho identificou irregularidades, com pagamento de salários bastante inferiores aos de trabalhadores libertos, incentivando substituição de mão de obra e dispensa de empregados não apenados.
O Jornal Folha de São Paulo, produziu duas importantes reportagens investigativas sobre o tema: “Indústria disputa trabalho barato do preso” e “Procuradoria investiga exploração de presos”. Em ambas, percebeu-se exploração de trabalho de apenados como instrumento de pagamento de menores salários e, consequentemente, obtenção de condições concorrenciais desleais.
Percebe-se que já temos documentados abusos na utilização de mão de obra de apenados, formando-se situações de dumping social. A partir da indevida economia de custos gerada pelo pagamento reduzido de direitos trabalhistas, amplia-se a lucratividade do empresário, em comparação com aqueles que se valem apenas da mão de obra de trabalhadores livres.
A competitividade desleal gerada pelo uso de mão de obra prisional gera preocupação ao redor do mundo. A China é um países de mais recorrente acusação de concorrência infiel e o uso indiscriminado de prisioneiros em suas fábricas já passa a integrar os argumentos de competidores dos EUA para imposição de sanções[2].
Mas os próprios Estados Unidos fazem largo uso de mão de obra prisional. Desde 1979, pelo menos 37 estados legalizaram a contratação de prisioneiros por empresas privadas, em serviços realizados internamente. A lista de beneficiários inclui as maiores corporações nacionais: IBM, Boeing, Motorola, Microsoft, AT&T, Wireless, Texas Instrument, Dell, Compaq, Honeywell, Hewlett-Packard, Nortel, Lucent Technologies, 3Com, Intel, Northern Telecom, TWA, Nordstrom’s, Revlon, Macy’s, Pierre Cardin e Target Stores[3]. A revista The Economist estima que essas contratações gerem cerca de US$ 1 bilhão de dólares por ano para as empresas[4].
O não esclarecimento de que também os egressos do sistema prisional devem firmar contratos de emprego com a empresa que venceu a licitação é situação ainda mais bizarra. Não há absolutamente qualquer razão jurídica que poderia impedir que a contratação desses trabalhadores deva observar o standart legal.
Tanto o Decreto como o PL, são obscuros quanto à remuneração a ser paga aos apenados e egressos. No caso do Decreto, em comparação aos demais trabalhadores, estabelece equiparação em transporte, alimentação, uniforme, equipamentos de proteção e inscrição previdenciária. Quanto ao salário, refere apenas “remuneração, nos termos da lei pertinente” (art. 7º, VI). O problema duplicado é que “a lei pertinente” também é pouco clara a respeito da obrigatoriedade de remuneração equivalente. E, para triplicar, o PL 580/2015 não ajuda nos esclarecimentos.
Projeto de Lei 580/2015
Pode ser ainda pior. Avança no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado n. 580/2015, o qual altera a Lei de Execução Penal para estabelecer a obrigação de o preso ressarcir o Estado das despesas com sua manutenção.
Não há nada de realmente novo na generalidade do apenado contribuir com os resultados econômicos de seu trabalho prisional no pagamento de despesas da casa prisional. Mas o PL, na proposta de redação do inciso VIII do art. 39 da LEP, exclui a expressão “mediante desconto proporcional da remuneração do trabalho”. E isso é realmente grave.
Originalmente, a Lei de Execução Penal prevê que o produto da remuneração deve ser direcionado ao ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manutenção do condenado (art. 29, § 1º, d). Mas também estabelece que esse ressarcimento precisa observar os demais destinatários do rendimento do trabalho do preso: indenização de danos pelo crime, assistência familiar e pequenas despesas pessoais.
Do modo como apresentada a proposta legislativa, há incompatibilidade com a orientação legal de repartição da remuneração, já estabelecida no art. 29, § 1º, d. Além disso, promove desproporcional benefício econômico ao estabelecimento prisional, sob prejuízo a outros destinatários da renda obtida pelo apenado. Especialmente, a tunga vai para os próprios vitimados pelo agir criminoso. Para reduzir despesas estatais no cumprimento de sua função de administração das punições, a parte mais lesada no agir criminoso – a vítima – acaba negligenciada e ainda mais desamparada.
Mas o PL 580/2015 tem outras complicações e perigosamente alarga a picada do capitão do mato na caça de novos braços.
Em todos os regimes de cumprimento de pena há possibilidade de trabalho remunerado, que tanto pode ser oriundo do Estado, como de empregadores privados. Atente-se que nos regimes semiaberto e aberto, o apenado pode firmar contrato de emprego se trabalhar para iniciativa privada – pelo menos espera-se que o novo Decreto 9.450/2018 não possa alterar essa regra de civilização.
O trabalho interno do apenado é obrigatório. O direcionamento de parte da renda ao ressarcimento ao Estado das despesas com manutenção da execução da pena já está delimitado no art. 29, § 1º, d, da mesma lei. Portanto, faz-se crer que o PL direciona-se ao trabalho remunerado nos regimes semiaberto e aberto. Trata-se de trabalho remunerado pelo Estado ou pela iniciativa privada.
Da forma genérica como apresentada a proposta legislativa, não há previsão de limites de desconto, abrindo espaço para conclusão de que toda a remuneração oriunda de trabalho do preso poderia ser direcionada para custeio de sua permanência no estabelecimento prisional.
O PLS 580/2015 também cala sobre as condições em que o apenado deverá ressarcir com trabalho as despesas de encarceramento. Por aplicação da Convenção n. 29 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 1957, não é cabível impor trabalho em benefício de particulares, de qualquer apenado. A convenção internacional foi necessária, em razão de experiências, como a de estados do sul dos EUA que, entre 1866 e 1872, maciçamente cediam prisioneiros para trabalhos privados, principalmente em plantações.
Evidentemente, pode haver trabalho do preso para particulares, mas jamais na forma compulsória. É urgente, portanto, delimitar que a pretendida imposição do art. 12, § 2º pode ocorrer, genericamente, nos trabalhos não direcionados a particulares. No caso de trabalho para iniciativa privada, também pode haver ressarcimento ao estabelecimento prisional, descontando-se parcela de salário. Mas faz-se necessário o esclarecimento de que não como efeito de imposição do trabalho em si, sob pena de haver retomada de escravidão legalizada.
Em resumo, com o PL, o trabalho prisional produziria benefícios econômicos ao recebedor do serviço e a contraprestação serviria apenas para a mantença da própria força humana de trabalho. Somada com possível interpretação de imposição de trabalho para particulares, estaríamos inaugurando novo ciclo escravista nacional. Não mais nas conhecidas “condições análogas”, mas dentro do conceito clássico de trabalho escravo.
Aperfeiçoamentos necessários
A fim de se evitar deslealdade nas condições de concorrência entre empresas, dois aperfeiçoamentos no Decreto e no PL devem ser operados:
Primeiro, a explicitação da formação de relação de emprego com o apenado e egresso do sistema prisional, gozando de idênticos direitos trabalhistas, sempre que o serviço for direcionado à iniciativa privada. Tratando-se, todavia, de trabalho para entidade de Direito Público, não há como se reconhecer vínculo empregatício, mormente em face da exigência de concurso público (art. 37 da CF).
Segundo, e em consequência do anterior, em qualquer hipótese de relação de trabalho com o apenado, há necessidade de se assegurar recebimento de todas as verbas próprias do cargo, em igualdade de condições com trabalhadores livres, tanto em obrigações trabalhistas, como previdenciárias. Evidentemente, há necessidade de compatibilizações com as restrições de locomoção, próprias de apenados.
Terceiro, com estabelecimento de percentuais máximos de utilização de trabalho de presos em estabelecimentos privados. O art. 36, § 1º, da LEP, apenas fixa limite de 10% do total da mão de obra em hipótese de utilização do trabalho em obras públicas. Por critério de coerência, sugere-se que essa mesma delimitação seja aplicada nas demais hipóteses, e para todas as espécies de apenados.
Para onde vamos?
É consenso que o trabalho prisional é uma das mais eficazes formas de promoção de disciplina e esperança de ressocialização. O gigantesco crescimento da população encarcerada, conjugada com a necessidade de redução de custos no ambiente de intensa competitividade, promove debate renovado. A delimitação de direitos trabalhistas para apenados e egressos é questão importante, mas no fundo, retoma uma velha questão. Afinal, quais são os limites impostos ao Estado na disposição daqueles que priva da liberdade? Cada período histórico impôs sua resposta – e jamais se mantiveram por muito tempo.
[1] 56. O Projeto conceitua o trabalho dos condenados presos como dever social e condição de dignidade humana – tal como dispõe a Constituição, no artigo 160, inciso II – , assentando-o em dupla finalidade: educativa e produtiva.
- Procurando, também nesse passo, reduzir as diferenças entre a vida nas prisões e a vida em liberdade, os textos propostos aplicam ao trabalho, tanto interno como externo, a organização, métodos e precauções relativas à segurança e à higiene, embora não esteja submetida essa forma de atividade à Consolidação das Leis do Trabalho, dada a inexistência de condição fundamental, de que o preso foi despojado pela sentença condenatória: a liberdade para a formação do contrato.
[2] https://www.thenation.com/article/hidden-history-alec-and-prison-labor/
[3] https://www.globalresearch.ca/the-prison-industry-in-the-united-states-big-business-or-a-new-form-of-slavery/8289
[4] https://www.economist.com/united-states/2017/03/16/prison-labour-is-a-billion-dollar-industry-with-uncertain-returns-for-inmates
Depois de mais de cem anos da abolição da escravatura ainda temos trabalhos similares a escravo no Brasil.
Que brasil é este.