FORÇA MAIOR E FACTUM PRINCIPIS – RESPONSABILIDADES NAS PARALISAÇÕES DECORRENTES DO COVID-19
“Como resultado das orientações de autoridades de saúde para restringir convívio social, por todo Brasil, diversos atos administrativos de prefeitos e governadores de estado têm determinado fechamentos provisórios de estabelecimentos.”
Rodrigo Trindade
Mestre em Direito pela UFPR e especialista em Direito do Trabalho pela Udelar (Uruguay)
Cesar Zucatti Pritsch
Juris Doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA) e especialista em Direito do Trabalho pela UGF/RJ
As novas rotinas impostas pela pandemia do novo coronavírus vem levando à familiarização com expressões até então restritas a certos ambientes. Descobrimos as diferenças entre endemia e pandemia, entre quarentena e isolamento. Para além da preservação da vida e da saúde, a garantia de sobrevivência de empresas e empregos também depende de bem compreender dois pouco tratados institutos de Direito do Trabalho: força maior e o factum principis.
Recente debate, fomentado pelas declarações na mídia quanto à possibilidade de imputação ao ente público das “indenizações” trabalhistas decorrentes da paralização do trabalho acenderam dúvidas sobre a figura do factum principis, previsto no art. 486 da CLT, embora até então estivesse praticamente em desuso. Por outro lado, a recente Medida Provisória 927 (art. 1º, parágrafo único) fez referência expressa de que “o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6 de 2020 … constitui hipótese de força maior, nos termos do disposto no art. 501” da CLT.
É preciso, entretanto, não confundir tais termos e fazer certo esforço para compreender melhor seu regramento.
FORÇA MAIOR TRABALHISTA
O art. 501 da CLT fala de força maior em sentido lato, como “acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente” (caput). O §1º acresce ainda o requisito da imprevisibilidade (“a imprevidência do empregador exclui a razão de força maior”), também clássico na doutrina civilista, assim como a inevitabilidade e a ausência de culpa, mencionados no caput. Para fins trabalhistas, o § 2º do art. 501 da CLT acresce ainda mais um pressuposto: o evento deve afetar ou ser suscetível de afetar “substancialmente … a situação econômica e financeira da empresa”.
Do instituto da força maior em sentido amplo, a doutrina costuma diferenciar os eventos imprevisíveis e inevitáveis oriundos da natureza (caso fortuito), catástrofes naturais como um tsunami, terremoto – ou uma pandemia; fatos causados pela vontade humana (força maior em sentido estrito), como greves gerais, guerras ou convulsão social; e fatos causados no exercício da discricionariedade da Administração Pública (factum principis), como uma desapropriação – portanto excluído o exercício do poder de polícia, como a interdição de um estabelecimento em razão de infração à legislação, e a atuação em contratos administrativos, aplicando multas ou rescisão por infrações contratuais (e.g., CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 13ª ed., Lumen Juris, 2005, pp. 168-170).
Portanto, para o art. 501, o gênero “força maior” para fins trabalhistas (abrangendo as subespécies acima) depende de:
a) fato inevitável;
b) sem concorrência do empregador;
c) imprevisível;
d) suscetível de afetar substancialmente a situação econômica e financeira da empresa.
Tal força maior do art. 501, embora não mais autorize a dispensa do pagamento do adicional de horas extras (art. 61, §2º da CLT, não recepcionado pelo inciso XVI do art. 7º da Constituição), ainda autoriza (arts. 59, caput, e 61, §1º, da CLT, especialmente agora quanto aos empregados de estabelecimentos de saúde, art. 26 da MP 927/2020):
– a extrapolação do limite de duas horas extras diárias;
– dispensa da negociação coletiva
A força maior trabalhista, segundo a literalidade do art. 503 da CLT, permitiria a redução de salários, proporcionalmente, em até 25%, respeitado o salário mínimo. No entanto, tal possibilidade, sem negociação coletiva, foi tacitamente revogada pelo art. 2º da Lei 4.923/65 e, ainda que assim não fosse, não teria sido recepcionado pela Constituição, tal qual a dispensa do adicional de horas extras.
O texto constitucional é cristalino no sentido de que “são direitos dos trabalhadores” (art. 7º) a “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo” (inciso VI). Ou seja, ao estabelecer, ainda que em situações de força maior, a redução unilateral de salários sem intervenção dos sindicatos, o antigo art. 503 da CLT é esterilizado pela norma superior. Por outro lado, o art. 503 já estava tacitamente revogado pelo foi revogado pelo art. 2º da Lei nº 4.923/1965, lei posterior que regula de forma mais abrangente a situação, permitindo a redução salarial de até 25%, mas com “redução da jornada normal ou do número de dias do trabalho” e “mediante prévio acordo com a entidade sindical”, portanto sem afronta à Constituição (ver RR-1156-96.2011.5.04.0811, DEJT 24/04/2015, e RR-25300-20.2001.5.02.0463, DEJT 28/10/2016, ambos da 3ª Turma, Rel. Min. Alexandre Agra Belmonte).
Em resumo, a força maior ocorre em razão de evento imprevisto, sem qualquer culpa do empregador. Mas mesmo nessa situação, eventual demanda de redução salarial apenas pode ocorrer através de negociação coletiva.
FORÇA MAIOR ESPECIAL – EXTINÇÃO DE EMPRESA OU ESTABELECIMENTO
Já o art. 502 da CLT prevê uma hipótese especial de força maior, exclusivamente quando cause “a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado”. Ainda assim, o empregador tem parte da responsabilidade em razão da alteridade da relação de emprego, autorizando uma repartição daquelas parcelas que seriam específicas da dispensa imotivada (sem prejuízo do pagamento completo dos direitos que independem da iniciativa pela rescisão, como décimo terceiro salário, saldo de salário, etc), a saber:
– metade do aviso prévio indenizado (ou metade da indenização pela rescisão antecipada do contrato a termo, art. 479 da CLT);
– metade da multa de 40% do FGTS.
FATO DO PRÍNCIPE
Finalmente, no art. 486 da CLT tem-se outra figura que poderíamos considerar uma espécie do gênero força maior lato sensu – o fato do príncipe. Aqui, além dos requisitos previstos no art. 501, ocorre:
a) paralisação temporária ou definitiva;
b) determinado por ato de autoridade de Estado.
Tal ato estatal, no entanto, deve decorrer de escolha discricionária do Administrador, em juízo de conveniência e oportunidade (escolhe desapropriar este ou aquele imóvel, escolhe construir um viaduto inviabilizando o comércio neste ou naquele local). A lógica é que as escolhas administrativas da Administração não devem onerar apenas a alguns, mas sim serem distribuídas pela sociedade em geral, que suporta a Administração através dos tributos.
Não é o caso quando ocorre uma situação de força maior em sentido estrito (como uma guerra, ou bloqueios nas estradas com risco de desabastecimento), ou de catástrofes naturais (como um tsunami ou uma pandemia severa, como a atual). Aqui, embora o ato estatal seja o agente imediato do prejuízo empresarial, o verdadeiro nexo causal se dá com a catástrofe de causa humana ou natural, estando a Administração, tanto quanto a própria empresa, compelida a agir rapidamente para preservar a vida dos empregados e demais cidadãos. A ordem estatal de cessação ou diminuição das atividades é apenas consequência prática da catástrofe em tela, não um fato da Administração ou “factum principis”.
PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS
Como resultado das orientações de autoridades de saúde para restringir convívio social, por todo Brasil, diversos atos administrativos de prefeitos e governadores de estado têm determinado fechamentos provisórios de estabelecimentos. Em situações pontuais, a diminuição da atividade econômica pode levar a dificuldades de empregadores cumprirem com os pagamentos de direito a seus empregados. Deve-se ter claro que aqui não se trata de ato discricionário, direcionado pontualmente ao benefício unilateral da autoridade estatal. As ordens ocorrem como mera decorrência do cumprimento de responsabilidades indeclináveis a quem governa.
Há muitas mudanças em curso no planeta, mas, entre as mais diversas responsabilidades do Poder Público, a preservação da saúde, segurança e vida dos cidadãos mantêm-se como as mais elementares.
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