O CONTO DA AIA: a distopia de um mundo do trabalho sem democracia

Na construção do complexo universo ficcional de avanço de ditadura teocrática, as erosões trabalhistas ocupam papel central. A leitura pode ser um grande chamado à atenção.

Rodrigo Trindade

Alertas e reflexões sobre como são e se pretendem as relações sociais não vêm apenas de livros científicos e leituras jornalísticas. “O Conto da Aia” e sua sequência, “Os Testamentos” são romances contemporâneos que podem servir para construir testes de identificação de regimes totalitários em gestação. Neste período de exemplos planetários de erosão democrática, derretimento científico e ressurgimento avançado de ideias totalitárias, a leitura pode ser um grande chamamento à atenção.

Resumidamente, os livros tratam da vida de mulheres em uma distópica teocracia instalada nos Estados Unidos. Para concentração nos sentimentos e impressões pessoais, são escritos em fluidas crônicas de primeira pessoa. Mas está longe de ser um monólogo. As cronistas apresentam-se dedicadas a chamar para um diálogo, como que prestando um conselho ao leitor imaginado.

O foco da autora – a extraordinária Margaret Atwood – é o cotidiano de uma cultura de normalização da misoginia, reduzindo a condição feminina a uma subordinada funcionalidade reprodutiva. Mas a construção do complexo universo autocrático também traz interessantes elementos para entender as relações de trabalho em um mundo sem democracia.

Em Gilead – a ditadura teocrática – o mundo do trabalho é bastante peculiar, especialmente para as mulheres. Nos flashbacks das personagens, a escritora mostra como foi o avanço de desconstrução da cidadania feminina. O machismo apresenta-se como integrante de um caminhar lento, constante e assustadoramente efetivo. E que se consolida principalmente a partir da negação da liberdade de trabalho. A hipervalorização da maternidade é amparada em leituras religiosas estupidamente simplificadas, e que vão, lentamente, se sobrepondo à ordem legal e constitucional então intrinsecamente opostas. Com isso, as mulheres vão sendo “libertadas” do trabalho intelectualizado, na exata medida, em que se encaminham perdas de direitos políticos e de propriedade.

Como todo “bom” regime ditatorial, não há liberdades profissionais. Pelo menos, não às classes pobres. Mas na rígida divisão de tarefas por gênero, há algo que homens e mulheres compartilham de forma igual: a imobilidade social. Em uma espécie de servidão moderna, a classe trabalhadora não participa de qualquer processo de decisão, devendo cumprir as duas únicas funções permitidas pelo Estado: produzir e se reproduzir. Serviços e ofícios não se desenvolvem por contratos, nem o empreendedorismo é admitido, pois todos trabalham a partir da imposição do abençoado interesse nacional.

A autora não aceita a facilidade de propor soluções fáceis, rápidas e heroicas para contornar o reacionarismo que oprime suas personagens. Atwood parece ter claro que não há qualquer fórmula garantida para retorno civilizatório. Afinal, o radicalismo instalado deixa sua condição original e passa a ser normalizado, enraizado.

Planificação da perseguição política, intensificação da intolerância, discurso religioso como projeto político, aprofundamento dos desníveis sociais: o cotidiano de noticiários televisivos está cheio de uma estranha, e muito presente, regularização do mal. O primeiro livro foi escrito em 1985, período de consolidação das lutas por igualdade de gênero e avanço em questões trabalhistas. Chamou atenção pela imaginação do cenário e fabulosa fluidez na prosa da autora. Já o segundo, veio em 2019, quando – a própria Atwood reconhece em entrevista – experiências recentes obrigam a um olhar que já precisa exorbitar a literatura.

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