Limitação de trabalho a condenados na Lei Maria da Penha: isso é realmente correto?

” Relações entre fatos e punições não estão presentes na lei do Rio. Sem poder diretamente aumentar as penas da Maria da Penha, volta-se à ampliação do espectro sancionatório, avançando em novas restrições da vida do infrator. “

Rodrigo Trindade

Nessa semana, o governo do Rio de Janeiro anunciou legislação que proíbe contratação para trabalho de homens condenados pela Lei Maria da Penha – que criminaliza a violência contra mulheres.

A violência feminina é uma das mais covardes formas de agressão e demanda combate sério e permanente por toda a sociedade. Como tema integrado a um complexo tecido social, é sempre bom lembrar uma das mais sábias máximas da humanidade: “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

A Lei Maria da Penha, como deve ser, prevê penas e medidas rigorosas contra seus infratores e, tal qual toda lei penal, pretende punir, educar e evitar novas condutas. A iniciativa legislativa, embora pareça bem intencionada, traz dúvidas de constitucionalidade, legalidade e adequação moral.

A se iniciar pela ampliação da sanção legal, avançando em matéria criminal e prevendo novo castigo não previsto na lei. Nosso pacto político expressamente veda penalizações para toda a vida (art. 5º, LXVII). Lei estadual em matéria que tangencia o Direito Penal e que fabrica castigo eterno é, no mínimo, discutível.

Para ampliar punição aos infratores, a lei estadual promove transporte de efeitos restritivos trabalhistas para conduta já tratada (e sancionada) pelo Direito Penal. Será adequado que atos devidamente cuidados na esfera criminal sejam repetida (e eternamente) castigados em outros planos da vida? É verdade que a indignação com a covardia da agressão feminina faz com que a reflexão não seja fácil. Mas ela é necessária.

Estabelecer duplicidades punitivas é coisa rara, mas existe. Por exemplo, a Lei de Ficha Limpa, além de estipular sanções penais, impede exercício de certos direitos políticos. Em outros países, há previsões de certas restrições para egressos do sistema penitenciário, principalmente ligados a crimes sexuais. Fixam-se limitações de profissões que podem ser exercidas e até lugares para se morar.

No caso da Ficha Limpa, a inegibilidade é temporalmente limitada, como toda pena deve ser. Mas principalmente porque a restrição ao candidato ficha suja concorrer é efeito diretamente imbricado com a infração que cometeu: limita-se nova atuação como administrador público exatamente porque foi como administrador público que a falta foi cometida.

Do mesmo modo ocorre com condenados sexuais. As restrições impostas são diretamente vinculadas à natureza do crime e voltadas a impedir reincidência. Assim, ex-apenados por pedofilia, por exemplo, nem podem trabalhar como professores primários, nem residir próximos a pré-escolas.

Mas em ambos temos diferenças profundas com a lei fluminense.

Relações entre fato e punições não estão presentes na lei do Rio. Sem poder diretamente aumentar as penas da Maria da Penha, volta-se à ampliação do espectro sancionatório, avançando em novas restrições da vida do infrator.

A tudo isso, soma-se outra questão importante, o direito ao esquecimento e que deveria ter aplicação mesmo àqueles que cometem faltas e amargaram todo o rigor dos castigos legais.

Por mais repugnante que seja o fato da condenação, o cumprimento completo da sanção criminal deveria fazer cessar a atribuição punitiva exercida pelo Estado. No fundo, há uma questão eterna da criminologia: perquirir se o cumprimento da pena dá ou não quitação ao ex-apenado, se o habilita a seguir a vida depois de pagar a dívida. Ou se o Estado seguirá lhe impondo restrições, mesmo após dizer que a sanção legal foi aplicada e formalmente esgotada.

Quando a misoginia transforma-se em agressão moral e física, temos algo de muito grave. Mas quando se pretende ampliar o âmbito punitivo, inviabilizando pela eternidade outros campos de existência, entramos em terreno de novas violações. A negação de penas perpétuas foi conquista ardida e talvez ainda não seja a hora de desistir da civilização. Mesmo que a cólera siga alta.

Ou pode ser que o ânimo punitivo, a vingança e a bile não cessem jamais e devamos avançar convictos para mais e mais penas perpétuas. E se, realmente, a paz for uma esperança pueril, uma marca corporal, de preferência bem visível, pode ser bem mais útil para (tentar) saciar a alma.

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