Para não errar o alvo: sobre a punição de Brasileiros na Rússia

Para não errar o alvo: sobre a punição de Brasileiros na Rússia

Rodrigo Trindade

 

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Falo sério: essa é uma das frases mais inteligentes da humanidade, e pode se encaixar bem na polêmica da semana.

Na Rússia, horda de infelizes aumentou o lista das vergonhas nacionais, já acumuladas nos últimos meses, executando barbarismo com moça local. Ao lado do desrespeito individual, impuseram agressão a todo gênero feminino, mostrando como a misoginia segue latente e consolidada, tal qual as mais entranhadas culpas.

Ativistas russas de direitos humanos avisaram que preparam ação judicial. Um dos agressores é advogado e a OAB anunciou que pretende investigar e pode punir com perda do registro. Outro dos bárbaros foi identificado como funcionário de companhia aérea nacional, a qual informou que despediu o empregado, também por conta da cena.

Felizmente, a compreensão da profunda inadequação do bando parece estar já consolidada, mas é preciso aprofundar o debate sobre âmbito aceitável das medidas punitivas para situações análogas. Não se trata de analisar com profundidade o caso concreto, mas pontuar a importância de delimitar searas corretivas para atos ocorridos no campo particular.

Pergunta-se: é adequado que atos realizados na esfera privada, e que admitem punições promovidas pelos lesados (individual ou coletivamente), possam ser também castigados em outros planos de vida? Especialmente, pode o empregador usar de sua prerrogativa de disciplina para penitenciar funcionário flagrado em atos privados reprováveis, mas que não se relacionam com obrigações profissionais?

A questão é complexa. Não há dúvidas de que há empregados com amplo poder diretivo e se apresentam ao mercado como “a cara da empresa”. Faltas graves que esses cometem, mesmo no âmbito estritamente privado, respingam pesado na credibilidade dos empreendimentos e a permanência na firma pode ficar insustentável. Mas são poucos os que têm tamanho poder.

Por maiores que sejam as ganas punitivas, por maiores que sejam as vantagens de capitalizar com a imagem de empresa que corta da própria carne com “dispensas exemplares”, segue a máxima: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Poder diretivo do empregador se exerce no âmbito da relação de emprego e caso se confunda com persecução criminal, perigosamente retornamos a regime de servidão.

A ideia de empresa faxineira de maus elementos é antiga. Nossa CLT veio de fábrica com disposição (art. 508) que dava poder ao empregador de despedir por justa causa o bancário que fosse devedor contumaz. Foi revogada apenas em 2010, exatamente pela compreensão de que as faltas cometidas no privado (dívidas econômicas) não poderiam repercutir no trabalhista.

O caminho foi longo. Em 1966, a Ditadura Militar modificou a CLT para constituir dispensa por justa causa de funcionário que tivesse praticado “atos atentatórios à segurança nacional” (Decreto-Lei n. 3/1966). Sob o mesmo fundamento de promover punição ampla a ativistas políticos de oposição, o regime ditatorial incentivou castigos nos âmbitos trabalhista e educacional, cassando funcionários, expulsando alunos de universidades e impedindo posses em cargos públicos.

Mais recentemente, o Tribunal Superior do Trabalho, oportunamente, reconheceu como abusivo e intromissivo regulamento interno de grande loja de departamentos que impedia namoros entre colegas.

Quando pessoas se divertem com a humilhação de outras, temos algo de muito grave. Mas quando se pretende ampliar o âmbito punitivo, ingressando em todas os demais campos de vida, entramos em terreno de novas violações. A separação de obrigações trabalhistas da vida privada dos empregados foi conquista ardida. Talvez não seja a hora de desistir, ainda que a raiva seja grande.
RT

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